terça-feira, 29 de março de 2011

Aula 2

AULA 2

Tema: Direito financeiro: objeto e definições. Necessidades públicas e atividade financeira do Estado. Competências legislativas.

1. Síntese da aula anterior:

Vamos recuperar o conjunto de problemas da aula anterior com a análise de um exemplo de grande interesse para os Estados nacionais, para os atores da sociedade internacional, e para a humanidade.

Diante de um cenário de incerteza, os Estados precisam realizar suas escolhas sobre como vão enfrentar os cenários que são visíveis e de acordo com o conhecimento científico que está disponível neste momento, mesmo que este conhecimento não tenha condições de expor conclusões.

Nesse contexto, as convenções e tratados climáticos representam uma escolha da sociedade internacional, sob uma abordagem que privilegia um princípio de precaução.

Trata-se, aqui, de uma escolha que reconheceu serem as transformações climáticas globais como uma ameaça global capaz de motivar um compromisso comum.

Como cada Estado-nacional vai contribuir para a redução das causas das transformações climáticas, que já foram identificadas? Como cada Estado-nacional vai reduzir emissões? Isto dependerá de decisões nacionais, que decorrem da capacidade econômica e financeira de cada um, em privilégio de um princípio de Direito internacional do meio ambiente: as responsabilidades são comuns, mas diferenciadas (princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada).

O princípio da precaução no contexto de transformações climáticas globais sugere que, na dúvida, os Estados deverão tomar decisões (e estarão autorizados a fazê-lo) que favoreçam a existência da vida e sua continuidade, mediante a garantia de sua viabilidade, e a restauração e proteção dos processos ecológicos terrestres.

Não é possível o exercício de liberdades econômicas sem que se tenha um mínimo de intervenção, ou alguma medida de intervenção sobre os recursos naturais. Essa medida mínima de intervenção exige um mínimo de proteção, ao menos sobre os processos essenciais ao desenvolvimento de todas as formas de vida. Aqui, ganha expressão um princípio da Carta da Terra, o princípio da integridade ecológica (princípio 5.1).

Os cientistas céticos supõem que as transformações reproduzem um processo natural de transformações físicas, produzem conhecimento científico baseado em boa ciência, argumentos válidos e demonstráveis, mas ciência minoritária. O painel do IPCC é um painel de cientistas, produziu boa ciência que posteriormente foi contestada, mas ciência majoritária. Não há, aqui, a verdade ou verdades, senão divergêcia científica, o que exige uma escolha por iniciativa das nações. A escolha foi expressa como um consenso global que reconheceu a relevância das conclusões do painel de cientistas do IPCC e de sua boa ciência. A consideração dessas conclusões levou à formação de um consenso global capaz de ter gerado convenções climáticas.

A questão suscitada aqui é: Por que razão os EUA não subscreveram e não subscreverão uma convenção climática? Porque o que eles desejam é uma demonstração clara que justifique assumirem custos e despesas para ações que, sequer, se sabe sobre sua eficácia e eficiência ou, ainda, sequer, se consegue demonstrar claramente a realidade dos riscos e das ameaças.

Por que uma nação deve atuar mesmo diante da incerteza científica sobre a realidade dos riscos ou de seus efeitos ou, ainda, diante da incapacidade de se demonstrar a eficácia das ações custeadas, e a realidade da causa eficiente?

Se essa causa não se demonstrar eficiente, ou se os efeitos não puderem ser úteis ao resultado atingido, ter-se-á o uso de recursos que poderiam ser destinados ao atendimento de realidades concretas e que teriam condições de ser enfrentadas por meio de ações eficientes ao juízo do conhecimento científico disponível.

Como justificar para um determinado modelo de sociedade que recursos públicos serão destinados para atender medidas como a transformação da matriz energética, de alto custo, em detrimento de ações mais concretas que podem atender com maior eficiência estados de risco que preciam ser removidos (saneamento ambiental, etc...)? Reside nessa indagação o centro do principal desafio suscitado ao Direito financeiro e ao Direito público contemporâneo: como assegurar a melhor forma de proteção de um extenso conjunto de direitos fundamentais, a melhor forma de viabilizar o desenvolvimento de projetos dignos de vida, em uma realidade de escassez de recursos financeiros?

Passemos para a análise de outro conjunto de exemplos, para o fim de suscitar uma reflexão sobre a relação entre escolhas e os efeitos dessas escolhas para a proteção de realidades dignas, por meio de direitos fundamentais.

A redução dos riscos existenciais como tarefa de Estado é uma tarefa comprometida com um princípio de sustentabilidade. Este enfatiza a finalidade de se assegurar a durabilidade e, sobretudo, a viabilidade da vida. Se desejamos um projeto viável de futuro, é imperativo que toda a ação do Estado e também, assim, a ação social, guiem-se e proponham cenários que favoreçam esse objetivo.

Sendo assim, quando se afirma a inviabilidade de se reconhecer um projeto digno de vida em um cenário no qual há bairros e loteamentos em sítios contaminados, residências localizadas no entorno de aterros sanitários, usinas nucleares, aeroportos, indústrias químicas, olarias, fábricas de pneus, e quando se afirma que não é possível exercer liberdades em um meio ambiente contaminado, não se está propondo a eliminação de todas as fontes e causas de poluição.

Estamos trabalhando, aqui, com a noção de limites de tolerabilidade. O que a sociedade, um projeto de vida definido pela ordem jurídica daquela realidade propôs? O que aquela ordem jurídica define como socialmente admissível para o exercício das liberdades?

Note-se que, aqui, há uma forte exposição de uma necessidade de conciliação entre proteção do meio ambiente e liberdades econômicas. Se estas são importantes para o desenvolvimento de uma vida digna e de níveis de bem-estar socialmente desejáveis, é relevante reconhecer que nenhuma liberdade econômica pode ter origem, senão a partir do uso e do acesso aos recursos naturias. Portanto, em uma ótica utilitária e egoísta, a sua proteção e a proteção de sua durabilidade também interessam à durabilidade da atividade econômica.

Então, não se trata de eliminar a poluição e a contaminação, senão de reduzir-se os riscos, eliminando-se os níveis que possam representar comprometimento da existência humana. Como se faz isso? A partir de conhecimento científico, de informação e, sobretudo, de decisão bem-informada, que a partir de cenários verossímeis, prováveis, esperados, possa ser adotada uma medida capaz de mitigar, ou de não permitir o avanço de cenários indesejáveis, ou nocivos à sociedade, ou, ainda, de cenários com riscos catastróficos que não podem ser revertidos sob qualquer ângulo, financeiro, social ou ambiental.

O risco catastrófico e o risco irreversível geralmente definem e influenciam escolhas precaucionais, e, deste modo, justificam despesas para o financiamento de ações sem prova conclusiva de que serão NECESSÁRIAS. Indaga-se: por que se deve autorizar uma despesa com uma ação que, sequer, tem condições de demonstrar, NESTE MOMENTO, sua NECESSIDADE? Porque em uma realidade em que estudos científicos, ainda que inconclusivos, têm condições de propor um cenário de efeitos irreversíveis, a simples hipótese de que ocorram, podem gerar consequências que, se concretizadas, não poderão ser enfrentadas ou seguradas. NESTES casos, e este é o caso das transformações climáticas globais, a despesa pública tem origem legítima na interferência de um princípio de precaução.

A qualidade do meio ambiente é um aspecto do bem-estar e integra qualquer projeto de existência humana digna em uma república como a do Estado ambiental brasileiro. Ruído representa poluição sonora, perturbação do meio ambiente que afeta a privacidade, e esta conexão entre direitos ambientais e direitos de liberdade clássicos já foi reconhecida no caso do aeroporto de Heathrow, pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

Outro aspecto relevante que merece ser enfatizado é o da impossibilidade de se distinguir entre direitos de liberdade e direitos à prestação no plano dos custos para o seu financiamento. Todos envolvem juízos sobre despesas. Assim, a proteção do direito à vida privada e à propriedade nunca seria possível sem que fosse instituído um sistema de justiça eficiente, que proporcionasse reparação e prevenção contra danos pessoais e contra os bens.

Por outro lado, não é possível se falar em proteção suficiente sob uma perspectiva que favoreça qualquer uma daquelas realidades, em detrimento de outra. Bem-estar somente é possível a patir da garantia de acesso aos benefícios de todos os direitos fundamentais, ainda que em níveis mínimos e variáveis. Esta modulação dependerá de cada contexto social, econômico e cultural. Algumas sociedades estarão mais aptas financeiramente e proporão demandas de maior intensidade na proteção de direitos de liberdade, outras de direitos socias, outras de todos os direitos em níveis máximos. Outras nações terão desafios de outras ordens para a ação pública, no plano de políticas migratórias, acesso ao trabalho, desenvolvimento de setores da economia, entre outros.

Nessa perspectiva, se a proteção de todos os direitos representa alguma medida de comprometimento dos recursos financeiros de um modelo de Estado, confirmando a tese de Cass Sunstein, é de outra obra do jurista norte-americano que podem ser extraídas contribuições para o aperfeiçoamento do desenvolvimento humano em uma perspectiva integrativa e holística, que relacione a natureza e o bem-estar humano em um processo de reciprocidade onde as ações e benefícios atuam de forma integrada.

Sunstein e Thaler acentuam que o modo como são realizadas escolhas e tomadas as decisões contribuem decisivamente para um projeto de futuro, de bem-estar e de felicidade. O modo como a ação pública define suas tarefas e seus comportamentos, como favorece o comportamento social e influencia a transformação de comportamentos pode contribuir decisivamente para a transformação da realiade, com benefícios existencias para toda a coletividade (licitações sustentáveis, aquisição de produtos ambientalmente certificados, investimentos no serviço público de transporte, tecnologias que estimulem o desenvolvimento de alternativas energéticas economicamente viáveis e sustentáveis).

No contexto das transformações climáticas extremas, convém analisar um exemplo mais concreto de medidas que sejam tomadas nesse plano. Uma delas é o investimento em políticas de desenvolvimento de novas tecnologias para uma matriz energética menos poluente. Ou no sistema de saúde, a partir de diagnósticos que apresentem a elevação nos números de atendimento por doenças respiratórias ou, ainda, por meio de leis restritivas do uso do cigarro com a mesma finalidade.

Para exemplificar a necessidade de colaboração entre o Estado e a sociedade na gestão racional da despesa pública, tomemos como exemplo as campanhas publicitárias que enfatizam a mudança de comportamentos para auxiliar no combate às causas da doença. Aquele que não adotar as medidas preventivas compromete a eficiência da ação. Esta escolha privada é nociva para o interesse de uma coletividade.

Da mesma forma, se o Estado exige que suas compras terão de exigir a demonstração da segurança ambiental dos produtos, a sociedade será influenciada a atender estas escolhas, reduzindo o desmatamento ilegal e reduindo a despesa com as ações de polícia, permitindo que estes recursos sejam destinados para outras ações igualmente prioritárias.

A existência digna de todos nós depende de que o Estado se comprometa a afastar todos os riscos que a ameacem, e assegure a realização das condições de infra-estrutura, serviços e prestações que sejam essenciais ao seu desenvolvimento.

O Estado deve ser capaz de favorecer as condições para o desenvolvimento de projetos dignos de vida, que significa, em última análise, uma existência duradoura e decente.

Para tanto, o Estado deve viabilizar o desenvolvimento da pessoa, assegurando-lhes o acesso a níveis essenciais de várias prestações, mas, então, entra no contexto a insuficiência, a falha, a omissão e a incapacidade estatal. Uma atuação parcial e limitada do Estado, que favoreça serviços de saúde e ensino, mas que não consiga auxiliar no acesso à moradia salubre e digna, representa um defeito na proteção, passível de ser corrigido pela ação das outras funções de Estado.

O valor dignidade de vida se encontra definido pela Constituição como um objetivo da república, interage com uma cultura universal de direitos humanos, e condiciona a ação do Estado e o exercício de todas as liberdades econômicas.

A Constituição define um projeto de futuro, que é viabilizado e concretizado por meio das escolhas realizadas no âmbito de um orçamento. Neste, as prioridades serão definidas de acordo com as necessidades de proteção, que são diferenciadas e variam de acordo com contextos sociais, econômicos e culturais. Proteção para o meio ambiente, despoluição de recursos hídricos, inclusão digital, inclusão social de grupos vulneráveis, proteção de povos indígenas, mobilidade urbana, acessibilidade aos portadores de necessidades especiais, políticas de habitação. São todas ações que propõem um modelo e programa de futuro, limitado a quatro anos, e no plano do desenvolvimento permanente do objetivo dignidade, devem ser coerentes e ser capazes de se comunicarem entre os mandatos e gestões. A interrupção entre as ações desfavorece a continuidade de um projeto de futuro para a existência do homem, e de desenvolvimento de sua personalidade, por meio de prestações universais e coletivas.

Serviço público decente é tarefa de Estado e sua inexecução representa um direito a partir da consideração do valor dignidade. O princípio contribui para a fundamentação de um conjunto de direitos, sociais, culturais, ambientais, econômicos. Note-se o caso do aeroporto de Heathrow, julgado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Qualidade de vida foi identificada como vinculada ao dirieto à privacidade e justificou a derivação de um dirieto ao meio ambiente salubre e livre de riscos que possam inviabilizar sua existência.

Aumentar o serviço público de transporte favorece a retirada de veículos, contribui para a redução de emissões. Mas, por outro lado, como esse serviço é prestado? É digno tomar um ônibus nas condições que se verifica diariamente, com superlotação e desconforto? A falha no serviço público e o controle social dele justifica direitos, e reforça que os objetivos do Estado são: a) favorecer a existência digna do homem, permitindo que se desenvolva como pessoa; b) concretizar o interesse público, cujo conteúdo é redefinido e ganha complexidade nas sociedades contemporâneas, suscitando tarefas cada vez mais extensas. Proteção social e proteger o interese público nestas sociedades impõe desafios em setores antes inimagináveis, da segurança pública ao meio ambiente; c) assegurar que os recursos financeiros disponíveis consigam proporcionar os níveis de bem-estar esperados e propostos por um projeto político, de uma Constituição, e de uma cultura universal dos direitos humanos.

Analisando os exemplos referidos na aula anterior, pode-se constatar que:

a) o aumento da despesa em razão de decisões privadas equivocadas e falha na ação de monitoramento do Estado. A consequência foi a elevação nas despesas de reparação e recuperação dos danos (vazamento de óleo);

b) A ausência de políticas de saneamento ambiental representa a elevação na despesa com ações no sistema único de saúde;

c) O excesso no exercício de liberdades econômicas (queima de palha de cana-de-açúcar) e a falha na ação de polícia administrativa representa um efeito nocivo para toda a coletividade, que perde qualidade de vida, respirando ar contaminado com índices inaceitáveis de enxofre;

d) A ausência da ação de polícia administrativa sobre o desamatamento de biomas representa elevados custos de restauração dos danos, além de perda de qualidade de vida, com a redução dos estoques de água potável, erosão de solos, perda de produtividade, diminuição da produção de alimentos, perda de serviços ecossistêmicos.

PORTANTO, escolher mal implica proteger mal o conjunto de necessidades essenciais e indispensáveis a existência do homem.

Proteger mal tais necessidades implica obstar as condições para o livre desenvolvimento da personalidade em um espaço democrático.

2. Problemas importantes:

Analisando todos os problemas expostos poderíamos enumerar como principais questões de interesse para a disciplina as seguintes:

Por que é necessária a proteção?

Que nível de proteção se deseja, está proposto pela ordem constitucional, e deve ser esperada pela sociedade?

Quanto custa proteger para assegurar um nível que seja admitido como essencial?

Contextualizando-os com o tema desta segunda aula, podemos enumerar as seguintes:

Qual é e como pode ser visualizada a relevância da atividade financeira do Estado? Qual é a utilidade do estudo do conjunto de conceitos e estruturas que serão expostas ao longo do ano?

Pensem no dia-a-dia de cada um, no cotidiano. Nas liberdades, no acesso a serviços públicos e em atividades das mais corriqueiras como manter limpos os espaços públicos, tomar decisões sobre o uso racional da água, não desperdiçando a energia elétrica. Tudo isso somente tem condições de chegar ao nosso uso a partir de iniciativas do Estado.

Não há direitos fundamentais gratuitos, sem custos. Quando o Estado prioriza a transformação de realidades existenciais dos mais pobres e menos favorecidos, transferindo-lhes renda e qualidade de vida, tributando menos ou destinando de forma reforçada, ações assistenciais e serviços, deriva estas ações de fontes de recursos, que têm que ter uma fonte.

Geralmente são impostos, pagos primeiro com fundamento em um princípio de solidariedade e, contemporaneamente, a partir da necessidade de se concretizar um padrão mínimo, para todos, de qualidade de vida.

Duas expressões são priorizadas aqui: responsabilidade e informação. Melhores decisões são decisões que terão como conseqüência, um uso mais racional dos poucos recursos que estão à disposição do Estado para concretizar um conjunto indeterminado de deveres, tarefas e de necessidades, que terão de ser escolhidas. Prioridades terão de ser definidas. Lixo demanda despesa pública para sua remoção. Caso contrário, demandará despesa pública em serviços de saúde. Menos resíduos resulta em reserva de recursos para outras finalidades mais relevanes e necessárias no momento.

3. Objeto, conceitos e definições do Direito financeiro

Direito financeiro e Ciências das finanças: a Ciência das finanças trata de atividade fiscal, que se restringe à captação de recursos para o custeio de todas as atividades estatais. O Direito financeiro trata do conjunto de relações vinculadas à atividade financeira do Estado, onde a atividade fiscal é um de seus componentes, na medida em que responde a pergunta de como as necessidades públicas são custeadas. Também deverá responder a de quem obtém, e quais são as necessidades que devem ser custeadas pelo Estado, além das demais relações de aplicação, execução e controle da relação receita, despesa e planejamento.

Atividade financeira, que constitui o objeto do Direito financeiro, compreende arrecadação de receita, gestão e realização do gasto, a fim de atender necessidades públicas. Estas não se confundem com prioridades públicas. Aquelas são definidas pela Constituição. As últimas são escolhidas pelo chefe do Poder Executivo ao encaminhar a mensagem de lei orçamentária.

Em sua dimensão objetiva, o Direito financeiro é um complexo de princípios e normas de organização da atividade financeira do Estado, que, por sua vez, representa o conjunto de atividades estatais e dos entes criados pelo Estado, para o fim de se obter receita e realizar despesas no cumprimento de suas tarefas essenciais. Estas representam, em última análise, a proteção e a concretização de direitos fundamentais, através das várias formas de atuação possíveis, por iniciativa do Estado ou por terceiros que executam algumas das funções estatais.

Não se trata de Direito tributário, porque este regula um aspecto específico da atividade financeira, que é a obrigação de entregar dinheiro que formará o patrimônio do Estado. Esta é só uma parte do conjunto de receitas integradas e relacionadas à atividade financeira do Estado.

4. A capacidade legislativa para dispor sobre matéria financeira.

A Constituição brasileira propõe um modelo de concorrência legislativa entre a União, Estados-membros e Distrito federal (artigo 24, inciso I, c/c §§ 2º, 3º e 4º, da CRFB), orgnaizado da seguinte forma:

a) União: normas-gerais;

b) Estados-membros e Distrito federal: complementação e suplementação. A primeira resulta da especificação e das condições de aplicação de norma geral pré-existente. A segunda, de inovação primária da ordem jurídica, diante da ausência de normas gerais produzidas pela União. Neste caso, o exercício é pleno pelos Estados, e as normas resultantes desta atividade perderão eficácia na superveniência da atividade legislativa da União.

c) Municípios não possuem competência para legislar em matéria financeira.

5. As necessidades e as prioridades públicas.

Necessidades X Prioridades: se é simples concluir que a necessidade de residir em um imóvel de 1.000 metros quadrados não pode ser definida como prioridade (que define a causa que justifica uma ação pública universal e isonômica), é um pouco mais complexo propor que o acesso ao ensino superior é necessário e também seria uma prioridade. A questão se impõe para resolução sob o ângulo de um mínimo existencial, que somente pode ser obtido por meio de deveres de proteção vinculados a um nível essencial de prestações. O Estado possui o dever de proteger direitos fundamentais, e a este dever se encontra vinculado, mas a intensidade de seu exercício não se encontra definida ao ponto de garantir um direito individual a uma vaga nas instituições públicas de ensino superior, a todos os cidadãos, ou ainda, o direito a uma residência a todos os membros da coletividade.

Façamos uma reflexão sobre o problema. Não seria difícil admitir que existe um direito fundamental à saúde, e um direito fundamental a níveis adequados de desenvolvimento cultural, ambos atribuídos de modo universal, e decorrentes de deveres atribuídos ao Estado pro meio da Constituição e de instrumentos internacionais de direitos humanos. Portanto, há deveres estatais de proteção que requerem a ação pública visando viabilizar uma existência digna de todos, concretizando realidades qeu possam favorecê-la, aqui limitadas à saúde e à educação. Mas será que dessa realidade de deveres estatais se poderia justificar um direito atribuído coletivamente aos moradores de um bairro, à construção de uma creche? O que justifica a construção da creche naquele bairro e não em outro bairro, já que todos possuem tal direito? Por que priorizar aqueles moradores e não estes? O mesmo ocorre em relação ao direito à saúde. Por que construir um hospital neste município e não em outro? Por que priorizar, neste momento, ações que visem melhorar a qualidade de vida de populações vulnerávies em detrimento de portadores de necessidades especiais? Por que antecipar decisões de proteção em benefício desta e não daquela comunidade ou conjunto de interessados?

Um dever de proteger um determinado direito fundamental decorre da ordem jurídica (Constituição, instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos e da intervenção legislativa) e atende a prioridades. Esse dever que decorre da ordem jurídica condiciona a JUSTIFICATIVA da ação pública (Por que proteger?).

A DISPONIBILIDADE econômica e financeira justifica a INTENSIDADE da ação.

Um dos problemas de maior interesse ao Direito Público e para uma teoria dos direitos fundamentais contemporâea surge quando se requer a resolução da seguinte questão: há aqui um direito fundamental?

A tensão entre necessidades e prioridades no âmbito de um processo de decisão que interessa a proteção de direitos fundamentais é fortemente CONDICIONADA pela valoração de que conteúdo pode ser exposto por um conceito de dignidade de vida.

Quando o Estado falha ao não proporcionar a possibilidade de se desenvolver um projeto digno de vida pode surgir um dever de proteger um direito fundamental. Aqui, se remete à discussão sobre um imperativo de proteção, e vamos para uma reflexão posterior, sobre QUEM deve proteger os direitos fundamentais. É uma decisão EXCLUSIVA do Poder Executivo, quando escolhe prioridades no âmbito de um orçamento? Do Poder legislativo, quando define direitos e a condição de seu exercício? Ou também cabe ao Poder Judiciário zelar pela proteção quando as demais funções falham (imperativo de proteção)?

Podemos expor vários graus de indignidade:

a) Um idoso que vende sorvetes no centro da cidade sem feriados ou descanso nos fins de semana;

b) A deficiência no atendimento bancário, nos serviços de saúde e aos usuários do serviço de transporte coletivo,

c) O lançamento de anões por circo francês.

O SE e QUANDO proteger nos remete à definição de direitos fundamentais, porque são expostos DEVERES DE PROTEÇÃO. As questões sobre se é devido proteger e quando se deve proteger são resolvidas pelo reconhecimento de um dever de proteger que tenha sido definido pela ordem jurídica.

O COMO proteger vincula-se à definição das PRIORIADES PÚBLICAS e define O QUE proteger, remetendo sua resolução a uma decisão sobre alternativas expostas ao juízo de disponibilidade financeira do Executivo.

Para ilustrar a racionalidade e a eficiência de uma escolha pública, tomemos como exemplo a decisão sobre o modelo de transporte público ideal para atender ao interesse coletivo em uma perspectiva de futuro. Em notícia recente publicada em periódico da capital, o gestor responsável por tais ações foi claro ao consignar que já foi realizado empréstimo para a contratação de BRT. Entretanto, até este momento, sequer, houve um estudo técnico ou uma decisão que pudesse ter exposto esta decisão como o resultado de escolha entre as alternativas disponíveis, e por meio da consideração e ponderação entre as vantagens e desvantagens de cada opção, visando indicar qual delas permitiria satisfazer com mais eficiência o interesse público.

6. As necessidades públicas, as prioridades públicas e a atividade financeira do Estado.

Ø O problema dos custos dos direitos, dos serviços e das estruturas que, para existirem, dependem de recursos e envolvem despesas: qual é o objetivo e o destinatário a ser atingido por este processo? A coletividade, e a garantia da dignidade da pessoa humana em um Estado social e democrático de Direito.

Ø O problema do estabelecimento das prioridades e das necessidades: que tipo de necessidades? Quem estabelece as prioridades? O que deve ser o critério para essas prioridades?

É o próprio Estado quem estabelece as necessidades que deverão ser consideradas como públicas, fixando, portanto, as prioridades que deverão ser atendidas pela atividade financeira.

Sob essa perspectiva, necessidades públicas podem ser compreendidas como prestações públicas a que o Estado está obrigado, através de suas funções (Judiciária, legislativa, e executiva), tendo como fonte primária a ordem constitucional ou a ordem jurídica em geral. Em primeiro lugar, é a função executiva, mas não se restringe a ela. É a ordem constitucional que define as necessidades públicas; o Executivo quem define as prioridades; o Legislativo quem as concretiza, através das leis orçamentárias; e o Judiciário quem as implementa ou corrige as prioridades pré-definidas pelo Executivo, em hipóteses excepcionais.

No plano do Executivo e do Legislativo, as prestações públicas são, em geral, aquelas relacionadas a serviços públicos, e sua execução é compartilhada entre União, Estados-membros e municípios. Cite-se, por exemplo, aquelas atividades enumeradas no artigo 21, da CRFB de 1988.

Veja-se, por exemplo, que o texto cuida de:

“Art. 21. Compete à União:

I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais;

II - declarar a guerra e celebrar a paz;

III - assegurar a defesa nacional;

IV - permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente;

V - decretar o estado de sítio, o estado de defesa e a intervenção federal;

VI - autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico;

VII - emitir moeda;

VIII - administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada;

IX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;

X - manter o serviço postal e o correio aéreo nacional;

XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95:)

XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95:)

b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;

c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;

d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;

e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;

f) os portos marítimos, fluviais e lacustres;

XIII - organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios;

XIV - organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

XV - organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional;

XVI - exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão;

XVII - conceder anistia;

XVIII - planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações;

XIX - instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso;

XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;

XXI - estabelecer princípios e diretrizes para o sistema nacional de viação;

XXII - executar os serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:

a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional;

b) sob regime de permissão, são autorizadas a comercialização e a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006)

c) sob regime de permissão, são autorizadas a produção, comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006)

d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006)

XXIV - organizar, manter e executar a inspeção do trabalho;

XXV - estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa.”

Quanto aos Estados:

“Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.

§ 1º - São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição.

§ 2º - Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação.”

Por fim, em relação aos municípios:

“Art. 30. Compete aos Municípios:

[...]

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.”

A técnica de identificação das necessidades públicas na Constituição, e, por consequência, de identificação daquelas atividades que são consideradas como serviços públicos, a serem prestados no interesse da coletividade, deriva da identificação de um dever. Sempre que for possível identificar que o texto constitucional [ou a própria ordem jurífica em geral] atribuiu deveres de atuar em determinados domínios, à União, aos Estados-membros e aos municípios, estes entes estão vinculados a prestar tais atividades.

A outra técnica está relacionada à possibilidade da associação das atividades, àquelas de que cuida o artigo 175, caput, da CRFB:

“Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

Os deveres de prestar serviço público surgem de competências, e estas são definidas pela Constituição, mas também podem sê-lo por leis. Todas essas atividades que são impositivas para prestação pelo Estado e que se destinam a atender a coletividade interessam ao exercício da atividade financeira estatal. Isso não quer dizer, entretanto, que, pelo fato de serem serviços públicos, só podem ser Executadas pelo Estado. São, quando executadas pelo Estado, custeadas por recursos públicos, mas podem ser executadas pelos particulares. Ocorre que o fato de não ser executado pelo poder público não desnatura a natureza pública da atividade, pois a titularidade continua sendo do Estado. Só se transfere sua execução, que continua a se destinar ao atendimento da coletividade.

Embora o principal conjunto de necessidades públicas esteja concentrado entre aquelas caracterizadas como serviços públicos, pelo texto do artigo 175, da CRFB de 1988, o Estado também atende outras necessidades.

São elas:

a) regulação da atividade econômica (artigo 174, caput);

b) intervenção no domínio econômico (artigos 173, e 177): o Estado participa diretamente do processo produtivo, que só pode acontecer quando indispensável à segurança nacional ou ao relevante interesse coletivo. E este deve ser definido por lei. Trata-se de exceção, porque a regra definida pela Constituição econômica brasileira baseia-se no princípio da livre iniciativa, ou da liberdade de iniciativa econômica (artigo 170, caput) que representa o quê? Que particulares têm preferência na atuação no domínio econômico, já que a ordem econômica ainda é a capitalista, na qual o processo produtivo e as relações têm origem na iniciativa de particulares, e não na iniciativa do Estado, assim como ocorre com a apropriação dos bens e meios de produção. São relações vinculadas à atuação dos particulares, e não do Estado. Esta é acessória.

Como afirma o professor Régis Fernandes de Oliveira (Curso, p. 42), o Estado não pode explorar diretamente e não pode ingressar livremente no mercado para produzir riquezas, pois não é essa sua tarefa constitucional.

Desse modo, só pode intervir e ingressar diretamente no processo produtivo se e nas condições definidas por lei, atendido o interesse da segurança nacional e relevante interesse coletivo. A ordem econômica é livre para os particulares, mas não é livre para o Estado, que só atua exercendo funções de controle, fiscalização e planejamento (artigo 174), sendo este indicativo para o setor privado e vinculante para as funções públicas. A vinculação resulta no instrumento orçamento, estando ali a planificação das decisões políticas, que se converterão em receita (recursos de entrada permanente no patrimônio público) e despesas (gastos), sempre em função de necessidades e prioridades fixadas pelo Poder Executivo.

c) exercício do poder de polícia.

Portanto, de competências, decorrem deveres, resultando, por sua vez, em prestações obrigatórias ao Estado. O conjunto, a extensão e a natureza dessas prestações são definidos pela Constituição.

Nesse sentido, vale ressaltar que a interpretação vem sendo flexibilizada no interesse da valorização do princípio da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República, fixado logo no artigo 1º, inciso III, da CRFB de 1988:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana;” (destacou-se).

O indivíduo no Direito financeiro deve ser compreendido como o centro da atividade estatal, e não como sujeito obrigado por sua atuação fiscal, e muito menos, como objeto do exercício de prerrogativas do Poder Público, de arrecadar receita, e principalmente a tributária. Cabe ao Estado proteger e assegurar o livre desenvolvimento da personalidade humana e níveis dignos de vida, e não destruí-los, subtraindo suas capacidades e potencialidades de desenvolver suas liberdades civis, econômicas, sociais e culturais.

A atividade financeira do Estado só pode ter como finalidade a proteção de necessidades públicas, convertidas em prioridades após as decisões e escolhas que são realizadas no processo de aprovação e deliberação sobre a lei orçamentária [aspectos que serão analisados em aula específica]. Recursos públicos só podem ter esta destinação.

Surgem, aqui, hipóteses muito prováveis de conflitos entre necessidades públicas, entre direitos fundamentais ou princípios constitucionais (direito à vida digna, dever de prestar determinado serviço em caráter universal e a necessidade de atender outras necessidades igualmente relevantes, do interesse de toda a coletividade, por exemplo, sendo estes, conflitos bastante comuns quando se trabalha com a prestação de serviços públicos de saúde, e, em menor medida, de educação ou outras necessidades existenciais, como o atendimento básico a crianças, creches, etc...).

Diante do princípio da separação das funções do poder, é o próprio Estado e, de forma mais específica, o Poder Executivo, quem define as prioridades. Mas já não definem de forma unilateral? Por quê? Porque há um instrumento - orçamento - que programa e ordena todo o conjunto de despesas que será realizada em um período de um ano pelo Estado, destinado a atender esse conjunto de necessidades, e no qual, em tese, deve haver a possibilidade de intervenção de interesses e necessidades da coletividade.

As audiências convocadas pela Assembléia Legislativa teriam que cumprir, em tese, esse objetivo, assim como o próprio Executivo pode fazer o uso de semelhante instrumento.

Um segundo fundamento para limitar essa pretensa unilateralidade das escolhas tem sua fonte no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Exemplo concreto: construção de creches, hospitais, atendimento de determinadas doenças pelas estruturas públicas de saúde, presídios, sistemas de esgotamento sanitário, pavimentação de ruas em benefício da saúde dos moradores de determinado bairro. Sempre que um mínimo não for garantido, e essa deficiência for constatada pela função judicial, estaremos diante de uma exceção para aquele poder do Executivo, para definir as prioridades.

Todos os tipos de necessidades estão contemplados? Ou, ainda, todos os tipos de necessidades devem ser atingidos?

Em última análise: o Estado está obrigado a realizar todos os tipos de necessidades? Relacionar aqui o problema da reserva do possível - duas vertentes: argumento que justifica o descumprimento de todas as garantias sempre que for exposta a insuficiência material da variável financeira; ou, ainda, um argumento que exige que o Estado demonstre, ativamente, que, de forma progressiva, está se empenhando a atingir níveis, de acordo com o que é razoável exigir das funções públicas.

Exercício programado: Análise de temas de projetos de lei que violem a iniciativa em matéria orçamentária, em grupos formados entre os alunos.

7. Indicações bibliográficas

BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2003.

CHULVI, Cristina Pauner. El deber constitucional de contribuir al sostenimiento de los gastos públicos. Madrid: CEPC, 2001.CONTI, José Mauricio. (Coord.). Orçamentos públicos. A Lei 4.320/1964 comentada. São Paulo: RT, 2008.

CREPALDI, Sílvio et al. Direito financeiro: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

FURTADO, J. R. Caldas. Elementos de direito financeiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Coimbra, 1997.

OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de direito financeiro. São Paulo: RT, 2006.

PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica. O significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2003.

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Aula 1

Disciplina : Direito Financeiro

Professor responsável : Dr. Patryck de Araujo Ayala

AULA 1

Tema: O Estado de Direito, direitos fundamentais e os custos dos direitos.

Problemas propostos:

a) Qual é a tarefa do Estado nas sociedades contemporâneas?

b) Como é possível que assegure o bem-estar neste modelo de sociedade?

c) O que significa dignidade de vida?

Situando o problema: como já foi dito, por ocasião da apresentação de nossa disciplina, foi realizada uma opção de abordagem para o nosso programa. Essa opção exige, antes de acessarmos ao conteúdo proposto em um programa básico de Direito financeiro, permitir que todos compreendam e reflitam sobre a importância e a influência do exercício da atividade financeira do Estado no dia-a-dia de cada um, considerando que se trata aqui de uma atividade que, apesar de pública, requer a participação da coletividade e a nossa participação na maior parte das decisões, para assegurar que elas possam resultar em conseqüências úteis em nossa vida. Estamos e estaremos tratando, em grande parte de nossas aulas, de três valores de proeminência na ordem jurídica das sociedades contemporâneas: igualdade, dignidade e qualidade de vida.

O conjunto de problemas exposto para nossa análise nesta aula é: faz parte do projeto existencial de cada um, ou ainda, este projeto tem seu termo final na simples garantia de acesso a alimentos, de sobrevivência física, ou à segurança alimentar? É isto que se deve entender por qualidade de vida e vida digna em uma sociedade contemporânea? Este é o objetivo e a tarefa atribuída ao Estado, que deve ser concretizada através do exercício de atividade financeira, em uma sociedade contemporânea?

1. A ordem jurídica de uma sociedade de riscos e de escassez de recursos

Uma primeira abordagem de aproximação sobre a compreensão de como se organiza a atividade financeira do Estado não pode desconsiderar a necessidade de uma exposição sobre a progressiva acumulação de tarefas atribuídas às funções estatais, sobre como estas tarefas se relacionam com os objetivos expostos por cada modelo de ordem jurídica, [enfatizando-se aqui a noção de ordem jurídica, que será contraposta àquela decorrente de uma realidade pós-revolução francesa, e que caracteriza uma abordagem moderna sobre o fenômeno jurídico] e, sobretudo, de organização de modelos de Estado e da própria elaboração do significado do fenômeno jurídico, do sentido de lei, e de Direito, situados no contexto de cada uma dessas realidades.

Para tanto, partindo-se de uma referência que geralmente situa as realidades históricas [ocidentais] de um Estado policial ou fiscal, como representações e manifestações de um Estado medieval, é possível descrevê-la, conforme explica Paolo Grossi, como uma realidade na qual o fenômeno jurídico, identificado em uma referência à lex, já consistia em uma idéia presente em Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica. Nesta, poder-se-ia identificar uma elaboração particular para a compreensão do que fosse uma ordem jurídica. A ordem jurídica de um Estado medieval expressava-se como uma manifestação de integridade, enfatizando o fenômeno jurídico e o Direito como ordenamento, e uma realidade [ou dimensão] social do poder, a qual expunha:

a) um pluralismo jurídico;

b) uma dimensão social do Direito;

c) o conceito de justiça e de razoabilidade como conteúdos essenciais do fenômeno jurídico, expondo, portanto, uma dimensão substantiva para o mesmo;

Em uma ordem jurídica na qual o Direito se expunha como uma manifestação de integridade, seria possível admitir como razoável, portanto, que o fenômeno jurídico pudesse se expressar, fundamentalmente, em uma relação de identidade, ou ainda, como o resultado necessário, e como a conseqüência de uma determinada realidade social, histórica e complexa, sendo possível identificar que:

a) privilegiava uma dimensão objetiva e não subjetiva do fenômeno da juridicidade, onde o sujeito responsável pela produção da norma é menos importante do que o conteúdo da norma;

b) enfatizava uma dimensão ôntica do Direito (conhecimento X crença) e não volitiva (ato de vontade imperativo), e que;

c) procurava preservar, em conjunto com uma idéia de direito como ordenamento, a complexidade da realidade das coisas, de forma a colocar ordem e harmonizar a complexidade, não restringindo ou simplificando essa realidade. Tal pretensão de simplificação e aumento da possibilidade de redução da complexidade é, ao contrário, própria da influência iluminista e que se fez reproduzir, de outra forma, na elaboração da visão potestativa do Direito, que se funda na noção da lei como ato de autoridade, que representa a manifestação de poder político (unipessoal e soberano) ou vinculado a uma autoridade circunstancial (parlamentos).

Por seu turno, a concepção moderna da lei, fiel à concepção proposta para a referência loi, caracteriza-se como o oposto do arquétipo medieval e se encontra expressa através de uma dimensão potestativa do direito. A positividade do Direito é reduzida e simplificada à concepção normativa e formal de lei, baseada na apropriação estatal do fenômeno jurídico, na rejeição à complexidade, à historicidade e à socialidade do fenômeno jurídico, e sobretudo, no privilégio de uma dimensão volitiva, potestativa e subjetiva da lei, onde esta se exprime como ato de vontade imperativa, fonte exclusiva da juridiciadade, que se consolidaria através das Codificações, cujos principais atributos reproduziriam a pretensão de unidade (fictícia), completude e justamente a exclusividade.

Esses atributos produzem, como conseqüência relevante para a cultura jurídica, a simplificação cultural do fenômeno jurídico e da própria positividade. Traços que evidenciam tais conseqüências podem ser reconhecidos pontualmente no desenvolvimento da teoria das fontes do direito, que ainda prioriza a lei (sob uma postura normológica) como fonte de juridicidade e a atividade de interpretação/aplicação da lei como momento distinto e estranho à positividade. Esta se adstringe ao momento da produção da norma e a interpretação, nesse sentido, seria tão somente a atividade de se reconduzir àquele momento de revelação da vontade imperativa. A concepção moderna de lei privilegia essa simplificação, porque compõe uma unidade e uma realidade artificiais, expressas em regras e que deveriam corresponder a essa realidade, reificando-a no tempo e estatificando-a àquele exato momento genético.

Tal como ponderado por Montaigne, a lei bastaria por si só para justificar-se, independente de um conteúdo pré-determinado. Em detrimento de uma postura ôntica do direito (própria da lex de tradição medieval), a concepção moderna de lei refuta a dependência dos processos de justificação em relação a conteúdos substantivos. A justiça como lei do período medieval é substituída pela concepção que identifica a lei à justiça, e a norma jurídica estatal como produto próprio de um processo legislativo. Todos esses fatores permitem delinear um quadro da cultura jurídica contemporânea, descrito por Grossi como um processo de mitificação do Direito, onde esse passa a se manifestar como um mito.

A atividade de conhecimento sobre a complexidade da realidade é preterida em favor da crença em pretensas verdades axiomáticas encerradas em um texto, que representa um momento da produção e que se superpõe à autêntica dimensão sapiencial do direito. Falar-se em ordem e em uma ordem jurídica, impõe a remissão à necessidade de harmonizar a realidade e compor a complexidade.

Até o momento, tratou-se de apresentar realidades de duas ordens jurídicas que expressariam, em melhores condições, um modelo de Estado vinculado a um conjunto bastante específico de necessidades e demandas, e de tarefas públicas. Estas tarefas deveriam ser executadas por iniciativa do próprio Estado, destacando-se as ações de segurança interna e externa, e de proteção à propriedade privada.

Semelhante representação exporia, adequadamente, [parece-nos] um modelo de Estado fiscal e de Estado policial. A questão suscitada nesta ocasião é: os desafios postos pelas sociedades contemporâneas poderiam ser enfrentados segundo um modelo de ordem jurídica vinculado à noção de loi, ou ainda, de um modelo de Estado fiscal ou liberal? Estas representações são suficientes para nos apresentar respostas adequadas no plano da proteção de direitos, de benefícios à coletividade, de assegurar qualidade de vida? Se não são, qual é a razão de não o serem?

Uma possível resposta decorre da admissão de que vivemos e convivemos, neste momento, com os efeitos de processos tecnológicos, produtivos e decisórios, social e ambientalmente nocivos, os quais constituem a manifestação de uma sociedade que se faz apresentar na forma de uma sociedade de riscos globais. Tal circunstância expõe à organização do Estado, funções e tarefas não apenas adicionais, senão diferenciadas.

O contexto social, político e ambiental das sociedades contemporâneas impõe ao Estado de direito tarefas vinculadas à proteção diante de riscos, que não são efeitos de desastres, catástrofes da natureza, senão do resultado de comportamentos humanos, de modelos de exploração econômica de tais recursos.

Note-se que se nem todos estão expostos, no plano nacional, aos mesmos riscos ou à mesma medida de riscos; no plano externo, se esta afirmação é verdadeira, deve ser tratada com alguns cuidados.

Os relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) apontaram que as fontes de emissões de Gases Efeito Estufa (GEE) decorrem não só de atividade industrial, mas também de atividades agropecuárias e de outras formas de degradação da qualidade ambiental, estas situadas em países em desenvolvimento (Norte).

Nesse cenário, perde o sentido expressar uma noção de iniquidade ambiental que possa ser expressa nesses estreitos termos. Se realmente não é possível conceber que todos os governos estão expostos aos mesmos riscos e a mesma medida de riscos, de outro modo, esta não pode ser simplificada desta forma.

Há, de outro modo, divergências sobre se os próprios prognósticos do IPCC seriam credíveis. Aponta-se para um prognóstico de elevação de temperaturas, da aceleração de processos de desertificação em florestas, de savanas na Amazônia, de elevação do nível dos mares, e de modificação do regime hídrico e pluviométrico em regiões inóspitas e áridas, envolvendo perdas e benefícios em uma escala global.

Um cenário de dúvidas e controvérsias também caracteriza a ciência das mudanças climáticas e influencia a própria definição da realidade dos riscos, contrapondo, de um lado [e estamos tratando aqui das discussões realizadas no plano do IPCC], os cientistas do painel de mudanças climáticas do IPCC, e de outro, cientistas tidos por céticos, como Bjorn Lomborg.

Aqui, fica claro que conflitos existem no plano científico. A controvérsia se estabelece entre cientistas, e se reproduz no plano da regulação, no plano de como a proteção é proposta por um Estado, através de atos normativos, de atividade administrativa e, por fim, da atuação judicial.

É aqui que se insere a configuração contemporânea de um modelo diferenciado de organização estatal, o de um Estado de direito, que além de social, também é ambiental.

Esse Estado tem como tarefa a de assegurar proteção diante dos efeitos de decisões civilizatórias, suscitando limitações e restrições sobre as liberdades econômicas, e para a capacidade de disposição e de definir os caminhos de desenvolvimento da personalidade humana, que passam não só pela exploração arbitrária e irracional de recursos naturais, segundo suas próprias necessidades e utilidades, senão pela necessidade de se assegurar proteção da capacidade de regeneração e de manutenção daqueles, e da qualidade de vida que decorra dessa proteção. Esse é o objetivo fixado para o Estado na condição de tarefa, que deve ser prestada perante cada um de nós, na coletividade. Tem-se aqui uma equação: tarefas e prestações, sendo esta a equação cuja complexidade está exposta neste momento à atividade financeira do Estado, e que se mostra importante para a análise no programa desta disciplina.

2. O Estado ambiental ou socioambiental de Direito

Para que possamos situar nesta aula, é conveniente ressaltar que o início de nosso programa depende de que, primeiro, seja enfrentada a seguinte questão: se estamos tratando da atividade financeira do Estado, a que modelo de Estado fazemos referência? Em que modelo de Estado se insere o conjunto das ações, dos processos, da escolhas, que veremos, estão associadas e decorrem diretamente da atividade financeira desse modelo contemporâneo de Estado?

Apenas a título de exemplo, temos, nas sociedades contemporâneas, a emergência da questão de riscos de diversas ordens, entre os quais ganha ênfase, neste momento, os ambientais, e mais especificamente, os riscos climáticos.

Nessa ordem de problemas e de seu enfrentamento, como é possível compreender os problemas ambientais para o fim de se obter proteção de direitos fundamentais, assegurar benefícios existenciais, que é o resultado último, conforme constataremos, das ações do Estado, e, portanto, da atividade financeira dele?

A compreensão de semelhante processo decorre, primeiro, de que se possa compreender os problemas ambientais sob o plano organizatório, e, depois, sob o plano normativo.

A equação propõe que a compreensão dos problemas ambientais supõe sua análise a partir da seguinte relação: plano político-organizatório (Estado) → plano normativo (juridicidade ambiental).

Os problemas ambientais destas sociedades contemporâneas expõem:

  • uma crise ambiental, que propõe uma nova qualidade de ameaças: perigos e riscos;
  • uma realiade de riscos visíveis, invisíveis, concretos ou abstratos, ou ainda, acessíveis ou inacessíveis ao conhecimento científico disponível. Os últimos (riscos inacessíveis ao conhecimento científico) reproduzem com maior fidelidade duas características essenciais dos novos riscos: a imprevisibilidade e a incontrolabilidade. Esses riscos também propõem ameaças resultantes da acumulação de fontes e causas de poluição e de degradação, consubstanciando o que o professor Canotilho classifica como problemas ambientais de segunda geração (problemas de efeitos acumulados), que mesmo que possam ser previstos, não podem ser controlados ou não são objeto de controle eficiente pelas instituições.

Esse quadro encontra-se associado ao fenômeno de uma irresponsabilidade organizada, (Beck) pelo qual, mesmo que possam ser previstas as fontes e as causas de degradação e poluição, omissões voluntárias das instituições no sentido de tolerá-las ou de não submetê-las ao controle adequado, oportunizam a proliferação das ameaças, tal como em relação àquelas que sequer podem ser confirmadas pela ciência.

Um exemplo desse cenário pode ser traçado a partir da poluição acumulada no continente asiático (riscos concretos e previsíveis, mas incontroláveis), e a partir do quadro de mudanças climáticas globais (riscos abstratos que apenas recentemente puderam ter uma relação de causalidade com comportamentos humanos demonstrada cientificamente, e que não podem ser controladas adequadamente).

Esse mesmo cenário propõe, no plano de relações econômicas globalizadas, interação entre os processos de produção e efeitos desiguais na distribuição dos ônus ambientais.

Exemplo: financiamento de complexos industriais em países em desenvolvimento por nações européias ou pelos EUA concentram a circulação dos benefícios financeiros nas nações de origem, e os ônus ambientais às nações onde estão instalados os complexos industriais. Esse cenário descreve efeitos que tendem a se acumular com outras fontes, e que, em alguma medida, são distribuídos para outras nações que não possuem nenhuma relação, seja com o financiador, seja com o espaço que autorizou a instalação das fábricas e atividades poluentes.

Conclusão: uma sociedade de riscos e, mais recentemente, uma sociedade mundial dos riscos, não é uma sociedade democrática, porque não oportuniza igual acesso à qualidade dos recursos naturais.

2.1. Síntese sobre os modelos de Estado e suas funções

2. Aspectos introdutórios: os modelos de Estado e a redefinição das tarefas públicas.

a) Estado fiscal: segurança pública, segurança contra ameaças externas;

b) Estado liberal: segurança pública, segurança contra ameaças externas, propriedade privada e vida privada;

c) Estado social: prestações sociais;

d) Estado social e democrático de direito: agregação de funções de planejamento, prestações sociais, exploração de atividades econômicas, e vinculação a princípios materiais, relacionados à dignidade da vida, e à concretização de um mínimo existencial, que agora também é ambiental (Estado socioambiental de direito)

3. Estado ambiental, escolhas públicas e privadas e direitos fundamentais.

Que tipo de Estado pode garantir, ao mesmo tempo, segurança cívica (segurança civil: proteção à integridade física, patrimônio) e segurança coletiva (acesso a bens, valores e serviços suficientes para uma vida digna)?

Um Estado de Direito, em sua perspectiva liberal clássica, que protege bens, pessoas [vida privada e direitos da personalidade] e que objetiva a segurança interna e externa pode proporcionar essa segurança, nesse cenário de transformações?

Como podemos relacionar a sociedade de riscos como um contexto de problemas relevante para o objeto de estudo de nosso programa de disciplina? Os riscos pessoais, os efeitos de desastres naturais, catástrofes, a proteção social, a segurança pessoal, ambiental, patrimonial, todas estas variáveis propõem custos e, portanto, despesas, que remetem ao nosso objeto de análise, o direito financeiro.

Percebam, a partir deste conjunto: a relação estabelecida entre as estruturas de organização estatal, suas tarefas e objetivos; e o conteúdo de nosso programa, que envolve, [ressalte-se], fundamentalmente, o problema de como o Estado, pode atingir a realização dessas tarefas e objetivos. De que instrumentos dispõe, que tipo de problemas envolve a realização dessas tarefas. Temos aqui, escolhas que serão realizadas.

Por que realizar algumas escolhas, e não outras? Por que outras escolhas são proibidas? Por que algumas escolhas são impositivas?

Outros aspectos também são importantes e serão enfatizados. O principal deles está na relação, que também influencia o estudo de nosso programa, entre escolhas privadas e os custos das ações públicas sobre a realização de tarefas pelo Estado.

A minha escolha entre não utilizar, utilizar racionalmente um veículo automotor, ou utilizar veículos com frequência, além de veículos que consumam combustíveis fósseis e que não exponham índices de economia e consumo aceitáveis, implica em incremento e em contribuir com o aumento das emissões, elevação nos custos paras as ações de descontaminação, custos da atividade produtiva para sua mitigação, além de ações de saúde, suportadas pelo Estado, e, em última análise, por todos os membros da coletividade na forma de receitas derivadas, decorrentes do exercício da atividade tributária, pela qual os particulares são destinatários de um dever de colaboração e de solidariedade para com o poder público.

Notem que não temos aqui um ato voluntário de beneficência, senão de um dever a que se encontram sujeitos os particulares e que tem seu fundamento em um princípio de solidariedade, princípio este que constitui a representação dos modelos de Estado social e pós-industriais. Estes deveres têm espaço cada vez mais expressivo na experiência constitucional ocidental, sendo possível identificá-los, na ordem brasileira, naqueles deveres ambientais, familiares, e vinculados à proteção social (trabalho, saúde e previdência). Insere-se aqui, também, um dever de colaboração para o fim de justificar moralmente a ação estatal em matéria tributária. Este tema será resgatado por ocasião da análise das receitas tributárias, objeto de aula específica.

Um exemplo muito marcante deste cenário pode ser associado ao quadro de catástrofes e de desastres civis recentemente noticiados em todos os veículos da mídia nacional. Deslizamentos de solo no Rio de Janeiro, enchentes em São Paulo e no Rio Grande do Sul, e mortes decorrentes desses eventos. Decorre da correta destinação e da ação oportuna dos governos [e isto exige a obtenção e a aplicação de recursos financeiros que têm geralmente a origem em patrimônio privado, sendo este o caso dos tributos em geral], a garantia de que cada um de nós possa dormir com tranqüilidade em nossas residências, livre da ameaça de deslizamentos, transitar com segurança em vias públicas, de doenças endêmicas ou epidêmicas [garantias de mera sobrevivência física, vinculadas às ações de segurança pública, de um sistema público de saúde, e de serviços de saneamento ambiental] ou de desenvolver plenamente nossos potenciais e nossa personalidade, obtendo melhores níveis de vida, com o acesso a serviços públicos de qualidade que proporcionem progressivo avanço em nossa existência física [este é o caso da educação, bem como da assistência, e do trabalho].

Recuperando o que já foi antecipado em nossa apresentação, três questões devem ser examinadas e merecem a nossa reflexão para que possamos compreender o complexo conjunto de relações e consequências da organização da atividade financeira do Estado, e de nosso programa.

Primeira questão: quem deve assegurar a proteção e a obtenção de benefícios existenciais nas sociedades contemporâneas? Se estamos tratando do Estado, uma segunda questão se impõe: todas as demandas existenciais devem ser asseguradas por um modelo de Estado, e estas demandas são permanentes e invariáveis? São comuns a todas as realidades? Terceira: se a resposta for negativa, a que se encontra obrigado o Estado?

Fazendo o uso de alguns vinculados à proteção do meio ambiente, que é a minha área de investigação, temos que na Constituição brasileira, a tarefa de proteção do meio ambiente não está atribuída com exclusividade ao Estado, senão a um modelo de co-responsabilização, no qual a execução da imposição é compartilhada entre as funções públicas e a sociedade, que colaboram (funções públicas entre si, e estas com os particulares) em nome do objetivo comum de assegurar a qualidade dos recursos naturais.

Por que isto e qual a relevância desta abordagem em Direito financeiro? Se o Estado também tem tarefas, deve ser ressaltado que sua execução implica a geração de despesas, de gastos públicos, cuja fonte é em grande medida, oriunda do patrimônio do particular. Notem, portanto, que o gasto público sempre envolve uma atividade de colaboração entre Estado e sociedade. O Estado é o gestor do patrimônio que tem sua fonte no exercício das liberdades econômicas dos particulares.

Esta abordagem terá sua relevância demonstrada porque permite, a um só tempo, aproximar o seu conteúdo de experiências práticas e da realidade, e permite sua comunicação e interação com outros domínios de crescente influência no direito contemporâneo: as teorias de justificação dos direitos fundamentais e o direito ambiental.

É o que nos remete situações como desabamentos, o aumento da poluição atmosférica, a contaminação dos lençóis freáticos urbanos e dos solos, a elevação das temperaturas médias nos espaços urbanos, entre outras. Todas elas suscitam reflexão, que, em última análise, vincula-se à construção de referências sobre padrões de vida digna, sobre a capacidade ou não de assegurar o pleno desenvolvimento da personalidade humana nesses espaços, e sobre a capacidade de assegurar proteção à autodeterminação da vontade.

Remete-se, portanto, à noção de qualidade de vida, e de quanta qualidade de vida o Estado se obriga oferecer, assegurar ou proteger.

O aumento nos níveis de contaminação do ar, solo, recursos hídricos implica, necessariamente, perda de qualidade de vida em diferentes níveis, sendo a manifestação mais evidente o aumento no número de atendimentos na rede pública de saúde (que representa a elevação da despesa pública). Temos, aqui, um exemplo que bem ilustra o que se deve entender por responsabilidade, eficiência e moralidade na realização das escolhas sobre como, onde e, principalmente, quando empregar os recursos públicos.

Uma decisão pública sobre os gastos que seja inoportuna pode representar sua elevação em momento posterior, elevação que poderia ter representado a aplicação em outras necessidades igualmente relevantes. Veja-se, por exemplo, o caso da omissão ou da inércia na realização de ações de combate ao assoreamento das margens de cursos hídricos urbanos, ou nas políticas de habitação urbana para o fim de desocupação de áreas de preservação permanente. Desta omissão pode resultar o desabamento, e efeitos intoleráveis de enchentes que exigirão ações públicas de alocação, assistência e reparação de danos, todas elas suportadas de forma direta por toda a sociedade.

Pergunta-se: é razoável, aceitável ou, ainda, é legal ou constitucional admitir esta perspectiva de justiça distributiva? A coletividade deve ser responsabilizada (no sentido de lhe ser exigida responder financeriamente pelo custo das ações do gestor público) tão somente pelo fato de ter conferido poderes de representação política a um chefe do Poder Executivo? Esta manifestação da democracia representativa é suficiente para o fim de imunizar o representante de prestar contas de suas decisões? Ou de exercer seus poderes nos limites da representação que lhe foi conferida?

Sobre esse conjunto de problemas deve ser ressaltado que o gestor público, conforme será exposto ao longo do programa da disciplina, ao menos, possui a capacidade de tomar decisões nos limites da representação que lhe foi conferida, representação que tem por objetivo a realização dos objetivos da república.

Excessos não podem ser admitidos e, neste plano, não podem ser suportados pela coletividade. Aqui, está a função dos instrumentos de controle na execução orçamentária e dos tribunais de contas. A representação política não lhe confere a capacidade soberana de realizar escolhas e responsabilizar financeriamente a sociedade independente das finalidades ou objetivos que deva atingir. Nem toda escolha é legítima para o fim de justificar a responsabilização da sociedade. Determinadas escolhas podem ser revistas, corrigidas, ou invalidadas no contexto de um modelo de controle recíproco entre as funções políticas.

Aqui, também, será possível perceber que o desenvolvimento teórico, filosófico e moral não constitui retórica, senão o fundamento de escolhas que são realizadas no âmbito de comunidades e de consensos sobre como deve ser guiada e desenvolvida uma vida decente em uma determinada organização social e sob um determinado modelo de organização política e econômica. Estas escolhas são realizadas no âmbito de Constituições e são, fundamentalmente, escolhas morais.

Outro exemplo, que também representa uma realidade cada vez mais próxima de nosso cotidiano, pode ser vinculado à análise do fenômeno das mudanças climáticas globais. Elas não decorrem necessariamente de comportamentos ou riscos de grandes proporções ou, ainda, de atividades de elevada capacidade de intervenção sobre os recursos naturais e os respectivos espaços. Um simples hábito como o de lavar diariamente as roupas, fazendo o uso de detergentes, pode contribuir de forma mais ou menos severa para a contaminação dos recursos hídricos e mortandade da fauna aquática com a alteração dos processos físicos e biológicos daquele ecossistema. Isto implica necessariamente em comprometimento e a necessidade de modificação das escolhas públicas. Se estas poderiam, inicialmente, ser realizadas a partir de um amplo espectro de opções, sujeitas a melhor conformação para o atendimento de um determinado interesse público, agora têm de se limitar ao atendimento daquela necessidade que surge como prioritária, porque envolve a tarefa de redução e mitigação dos riscos à saúde humana.

Decisões e comportamentos privados podem vincular em maior ou menor medida as escolhas estatais e o modo de atuação de cada uma de suas funções.

Na hipótese contrária, em que não sejam destinados recursos para despoluição e a redução dos riscos ao meio ambiente e à saúde humana, terão de ser realizados, necessariamente, para o atendimento do serviço público de saúde, que reproduzirá, provavelmente, cenário que exigirá o aumento na demanda por prestações públicas.

Em todo caso, escolhas irresponsáveis realizadas sob a perspectiva privada não representam, em nenhuma hipótese, um bom negócio para a coletividade, que se vê afetada de forma indireta pelos resultados de atos que não lhes podem ser atribuídos. Estes efeitos decorrem no aumento nos gastos públicos e na afetação excessiva de seu patrimônio, visando atender a essas necessidades e prioridades geradas por iniciativas de poucos. Este cenário reproduz uma realidade de injustiça e de iniquidade ambiental cada vez mais comum nas sociedades contemporâneas, nas quais os riscos representam efeitos negativos decorrentes da iniciativa de poucos, sobre a esfera existencial de muitos, e que se estende em escalas distantes no tempo.

Dessa exposição, resulta clara a necessidade de se reforçar a noção de responsabilidade, que compreende um sentido de cooperação coletiva e de solidariedade no domínio do direito financeiro, relacionando os comportamentos públicos e privados, a ação estatal e o envolvimento de toda a coletividade. Para ilustrar este aspecto, notem, por exemplo, que grande parte das enchentes urbanas decorre do acúmulo de resíduos, e estes resíduos são produzidos por cada um de nós, sendo, portanto, o resultado e a conseqüência de comportamentos que não são estatais, senão privados, particulares. Ocorre que destes comportamentos, decorre maior ou menor comprometimento da ação estatal no sentido de assegurar proteção civil perante os efeitos das enchentes, e do mesmo modo, com as ações destinadas a despoluir os cursos hídricos, manter a qualidade das águas, tratar os resíduos produzidos pela sociedade e reduzir os níveis de contaminação.

Por outro lado, o mesmo cenário também pode ter origem na omissão estatal, ao deixar de fiscalizar ou de assegurar a correta ordenação e o uso dos espaços e do solo urbano, ao deixar de executar obras de saneamento ambiental, desocupação de áreas de risco, recuperação de áreas de preservação permanente para o fim de evitar os riscos civis em períodos de chuvas intensas.

Enchentes contribuem para a contaminação de lençóis freáticos utilizados para o abastecimento e o consumo humano. A ausência de investimentos no tratamento e no saneamento ambiental resultará na provável elevação das despesas públicas com os serviços públicos de saúde, diante da possibilidade da elevação nos números de atendimentos relacionados a um conjunto de doenças infecto-contagiosas.

O mesmo cenário também pode resultar da ausência nos investimentos relacionados ao controle da poluição atmosférica ou nas ações para o fim da diminuição de emissões no setor de transportes urbanos. A ausência de ações públicas de educação ambiental ou mesmo de incentivos, investimentos em pesquisa sobre alternativas tecnológicas para combustíveis fósseis pode resultar em cenário semelhante: a elevação nas despesas relacionadas ao sistema público de saúde, decorrente do aumento no número de casos de doenças respiratórias, ou cânceres, cuja prova científica que relacione tais efeitos à referida causa há muito tempo deixou de estar reservada ao âmbito das conjecturas, razão pela qual, mesmo sob uma lógica de custos-benefícios, seria perfeitamente possível justificar as ações públicas.

Neste ponto, questão de grande relevância ainda pode ser suscitada, mas que não será objeto de aprofundamento em nosso programa: o que justifica a ação pública para a proteção de direitos fundamentais? É demandada a evidência científica conclusiva, prova conclusiva sobre uma relação de causalidade (vide os investimentos em ações ambientais para a redução de determinados riscos) e a demonstração de que os custos da ação serão equivalentes aos benefícios resultantes de tais investimentos? Ou diante de determinados riscos, é suficiente a exposição de evidências, ainda que não conclusivas, mesmo que os benefícios esperados não superem os custos das medidas que terão que ser adotadas?

Em outras palavras: diante dos riscos representados pela exposição continuada ao amianto, ou mesmo, diante dos riscos representados pelo aumento das emissões do setor de transporte, o Estado poderia justificar, ou estaria autorizado a propor uma determinada ação pública, mesmo que não fosse possível demonstrar cientificamente e de forma conclusiva que o aumento do número de casos de doenças respiratórias e de cânceres pudesse ter origem na poluição atmosférica, ou que os casos de asbestose em um determinado município, Estado ou localidade, decorrem da exposição continuada ao amianto?

Sob a perspectiva exposta até o momento, é possível constatar que, quando examinamos o conteúdo vinculado ao direito financeiro, não podemos nos restringir exclusivamente à análise das leis orçamentárias e dos instrumentos destinados a organizar e destinar recursos públicos.

A correta compreensão da disciplina e de seu conteúdo passa, primeiramente, pela compreensão de que estamos lidando aqui, com um conjunto de relações que não envolvem apenas o Estado, conforme costumeiramente costuma ser exposto nas obras de referência.

Temos por objeto um conjunto de relações que envolve necessariamente a análise da dinâmica das relações sociais, de um projeto democrático exposto por uma formação estatal definida por uma Constituição. Um Estado social e democrático de direito, que aponta que seus objetivos não podem ser atingidos senão com a cooperação entre a sociedade e as funções públicas.

Não podemos compreender a disciplina, seus temas e seus instrumentos de forma dissociada desta imagem e deste projeto de ordem social proposto pela Constituição brasileira.

As escolhas privadas e os comportamentos sociais produzem conseqüências cada vez mais relevantes no plano coletivo [os efeitos que atingirão todos os membros da coletividade] e no plano estatal. Estas escolhas modificam a forma e a própria definição de como o Estado se comportará perante os problemas e contextos sociais, políticos e econômicos, visando assegurar a realização de suas tarefas.

Através de suas funções, o Estado pode estimular, incentivar ou desestimular comportamentos, seja por ações de comando e controle (proibições e restrições) ou sob políticas públicas que induzam escolhas voluntárias pelos particulares.

A partir do momento em que um comportamento deixa de ser uma mera escolha individual e se torna influente sobre o caminho que toda a coletividade pretende propor para a sua própria existência, teremos conseqüências relevantes para as escolhas que serão realizadas pelo Estado.

Um indivíduo que decida consumir alimentos orgânicos ou que faça a separação dos resíduos pouco contribuirá para uma alteração substantiva que seja positiva para a ação pública. Entretanto, no momento em que tais escolhas se integrarem ao ponto de um consenso coletivo expressivo, será visível o efeito no plano das escolhas estatais. Portanto, as conseqüências de comportamentos determinados e de atos de poucos podem se estender de forma coletiva, sendo suportados por toda a coletividade na forma de custos, de deveres de conteúdo econômico.

Podemos citar mais outro exemplo bastante próximo de nosso cotidiano, que pode ser utilizado para a exposição de formas diferenciadas de se visualizar a preponderância de uma discussão vinculada à organização financeira do Estado. Quando o Estado adquire bens que não provêm de atividades ambientalmente certificadas, ou que reflitam padrões sustentáveis de uso dos recursos naturais, o principal resultado para a Administração Pública é a apresentação de uma proposta de preços economicamente mais vantajosa, que tende a influenciar uma escolha por esta em detrimento de outras que possam exprimir preços superiores.

Ocorre que essa proposta reflete apenas uma conveniência imediata para a Administração Pública, uma vez que o preço é o resultado final da consideração de custos, que por sua vez são determinados a partir da consideração de um conjunto complexo de variáveis, o qual pode compreender elementos sociais e ambientais. Sob este contexto, um preço pode ser economicamente mais vantajoso para a Administração, mas pode lhe produzir consequências indiretas bastante severas, conseqüências sob a dimensão financeira e que, em última análise, produzem efeitos na forma de ônus ou responsabilidades suportadas por toda a coletividade.

Se cabe ao Estado zelar para que as aquisições de bens e serviços sejam realizadas do modo mais econômico quanto seja possível, visando promover o uso racional dos recursos públicos que são limitados, também deve zelar [porque lhe foi atribuído o dever geral de proteção dos direitos fundamentais, decorrendo destes a função de proteção e a tarefa de proteção mencionados] pela proteção da sociedade perante riscos a sua qualidade de vida, ao seu bem-estar, a sua saúde, e pela proteção do meio ambiente, compreendido em suas realidades natural, cultural e social.

Nesse sentido, uma escolha que pode representar a expressão imediata de economicidade, pode resultar, de forma indireta, na elevação de custos para a proteção de tais direitos fundamentais, posteriormente.

Em outras palavras, fazendo o uso de um exemplo mais concreto, tem-se que a aquisição de madeira oriunda de desmatamento ilegal, de espécimes imunes ao corte, expostos à ameaça real de extinção, somente representa um preço inferior, e portanto, uma vantagem econômica ao Estado, porque não expressa TODOS OS CUSTOS que deveriam ter sido considerados para a exposição de tal preço.

Não foram considerados nessa equação, eventuais custos sociais e, principalmente, os custos ambientais do produto oferecido. Uma vez desconsideradas estas variáveis para a composição do preço, a vantagem econômica imediata se reverte, posteriormente, em desvantagens na forma de externalidades compartilhadas de forma coletiva, entre todos os membros da sociedade.

O comportamento público e as escolhas realizadas pelo poder público podem envolver e refletir em perda de qualidade de vida para toda a sociedade.

Entretanto, a ação do poder público que resulte de suas próprias escolhas não são as únicas capazes de influenciar, de forma positiva ou negativa, a transformação da realidade.

Escolhas estatais e os comportamentos particulares podem produzir conseqüências sob o plano existencial. Melhoria na qualidade de vida ou prejuízos para o bem-estar podem resultar dessas escolhas, e essas escolhas podem representar consequências úteis, deficientes ou insuficientes sob o plano do exercício da atividade financeira, que é uma atividade pública.

Bem-estar é uma referência variável e só pode ser definida contextualmente, historicamente e culturalmente. O desafio é determinar qual é o padrão de bem-estar a que o Estado se encontra vinculado, e qual é o grau de intervenção que terá de ser justificado para o fim de acesso aos recursos necessários, sob as liberdades econômicas. Aqui, cabe utilizar o exemplo do lixão no município de Cuiabá, para especificar a insuficiência de uma leitura de sucessão geracional para os direitos, e para enfatizar a interdependência entre todos, a fim de justificar a ação estatal. Utilizar o exemplo do bem-estar sob o plano da igualdade de acesso aos benefícios e vantagens existenciais, tendo como contexto o do lixão.

O Estado deve assegurar a igualdade de acesso aos benefícios e vantagens existenciais. Sendo assim, o bem-estar, situado na condição de efeito e resultado da ação pública, deve ser um objetivo universal ao alcance de todos.

Tomando-se como exemplo o contexto de um lixão, tem-se que o Estado deve ser capaz de proporcionar a todos segurança sanitária, ambiental e à saúde humana por meio de tratamento adequado dos resíduos. Se o poder público não proporciona o tratamento adequado de resíduos e os acondiciona em um lixão, os benefícios serão auferidos por poucos (que possuem condições de escolher moradias bem localizadas e que nunca serão atingidas por uma decisão pública co esse conteúdo) e os efeitos negativos suportados por toda a coletividade que resida em seu entorno. Há aqui um prognóstico negativo decorrente da falha na ação estatal. Por outro lado, se for atribuída a correta destinação dos resíduos, por meio de um aterro sanitário, o problema de justiça ambiental (localização da área) ainda persiste, ainda que tenha sido mitigada a probabilidade de ocorrência das externalidades (efeitos negativos). Entretanto, se nenhuma medida for adotada pelo Estado visando influenciar a transformação do comportamento dos particulares, reduzindo sua capacidade diária de produção de resíduos, ou se estes não transformarem seus hábitos de consumo visando atingir voluntariamente tal finalidade, o problema nunca poderá ter uma solução adequada. Este primeiro exemplo reforça a relação, que procuramos enfatizar nesta primeira aula, entre os comportamentos públicos e privados na transformação positiva ou negativa da qualidade de vida que se pretende proporcionar para uma universalidade.

Outro exemplo: A aquisição de madeira, v.g, oriunda de desmatamento ilegal e a aquisição de bens que empreguem em seu processo produtivo o uso de trabalho escravo representam a diluição coletiva de externalidades, de custos sociais e ambientais que não foram oportunamente considerados, seja pelo operador econômico, seja pelo próprio Estado, que assim procedendo, contribui para o incremento do quadro de riscos, que deveria reduzir e mitigar, pois lhe foi atribuído um dever de proteção dos direitos fundamentais.

Portanto, escolhas que podem representar vantagens econômicas em um plano imediato podem resultar, em escalas temporais variadas, desvantagens expressas em cenários de iniquidade ambiental, porque externalidades produzidas de forma privada e toleradas pelo Estado que deveria assegurar a proteção dos direitos fundamentais, são repartidas e compartilhadas entre todos os membros da coletividade. Tem-se, aqui, a reprodução de uma visível contradição: O Estado obtém vantagens econômicas às custas de contribuir, de forma indireta, para a elevação dos riscos que deveriam ser evitados pelo exercício de suas funções.

Se é dever estatal proceder de forma racional e proporcional perante o interesse público que precisa ser atingido, objetivando assegurar o melhor nível de desenvolvimento de um conjunto expressivo de realidades vinculadas à existência humana, é também dever estatal assegurar a proteção dos direitos fundamentais à saúde e ao meio ambiente, reduzindo os riscos e não contribuindo para a sua elevação. Se assim procede, contribui de forma distinta daquela sugerida inicialmente, para a elevação dos gastos públicos e para o desequilíbrio na realização de padrões de justiça distributiva; contribui para o incremento dos riscos existenciais e não para a sua mitigação e redução.

4. Dignidade de vida, mínimo existencial e a proteção dos direitos fundamentais.

O Direito financeiro propõe como objeto, conforme será analisado na próxima aula, a investigação sobre problemas que, neste momento do desenvolvimento do Direito Público, não limitam seu interesse a esta disciplina, além de exigir a comunicação com outros domínios do Direito Público e Privado, visando viabilizar a compreensão de seus instrumentos e de suas funções.

Se considerarmos que propõe, em última análise, uma investigação sobre como o Estado poderá viabilizar um determinado projeto de sociedade definido por uma Constituição ou experiência jurídica, a partir de instrumentos e dos recursos financeiros que estejam ao seu alcance, estamos propondo aqui a conexão com objetivos que não constituem o objeto do interesse exclusivo de uma disciplina. Assegurar a existência digna em um espaço público de um Estado de Direito (social, democrático e ambiental) é tarefa de Estado, requer a colaboração social, e é um dos objetivos da república.

Viver dignamente, desenvolver plenamente a personalidade do homem e assegurar que cada um de nós consiga ser capaz de definir e escolher um projeto de vida que lhe satisfaça e proporcione bem-estar são objetivos que somente podem ser atingidos, mesmo individualmente, por meio de um conjunto de pressupostos que dependem da ação pública.

A ação dos particulares, buscando desenvolver e otimizar as condições que lhes garantam felicidade, ainda que permitam proporcionar níveis mais elevados do que os padrões que sejam considerados essenciais, dependem de algumas pré-condições, entre as quais, a proteção de uma ordem econômica, um sistema de justiça, um sistema de segurança pública que lhes assegure o exercício de suas liberdades civis e econômicas. Por outro lado, toda a universalidade deve ter acesso, por iniciativa do Estado, ao conjunto de prestações que seja reputado elementar para o desenvolvimento de uma referência objetiva de dignidade.

Quanto mais otimista e exigente é o projeto político definido pela Constituição, quanto mais expressiva é a qualidade das demandas existenciais postuladas por uma ordem social como objetivo estatal mínimo a ser satifeito em proveito da comunidade, maior será a intensidade com que será exigida sua intervenção e maior a extensão do conteúdo do que se deva entender por um mínimo existencial (que se vincula como o resultado de um nível mínimo de prestações, se preferirmos a fórmula da Constituição italiana).

Se pudermos assinalar como o Direito financeiro pôde ser exposto nesta aula, é suficiente enfatizar: a) a relação entre escolhas (públicas e privadas) e sua capacidade de influenciar a determinação dos níveis de proteção dos direitos fundamentais e; b) a intensidade da ação pública para o fim de concretizar esses direitos, que se encontra vinculado ao que se denomina como um minimo existencial.

O Estado (o modelo de Estado contemporâneo) deve ser capaz de assegurar o desenvolvimento de projetos de vida, definidos livremente pelos particulares, para o fim de lhes satisfazer pretensões de bem-estar, desde que estejam integradas e sejam compatíveis com o que se encontra proposto pela Constituição.

Isto porque nem todas as pretensões individuais e perspectivas de felicidade se encontram ou podem ser integradas a uma ordem jurídica. Alguns comportamentos não o são por razões sociológicas, culturais e de outras naturezas, e, desse modo, restringem a margem das liberdades e a extensão do conjunto de opções ao alcance dos particulares.

Essas condições e os pressupostos indispensáveis para que essas escolhas ocorram ou possam ser realizadas, e para que projetos de vida possam se desenvolver por iniciativa livre dos próprios interessados, supõem a ação do Estado no domínio do Direito Financeiro. Mais do que isso, supõem a ação de um determinado modelo de Estado, em consonância com as demandas e os objetivos requeridos no âmbito dessa forma política.

Mais ou menos proteção depende de um contexto sócio-econômico e cultural, da qualidade e do conteúdo das escolhas que são realizadas no âmbito de prioridades e necessidades, dos critérios utilizados para que essa ponderação ocorra e, sobretudo, da disponibilidade dos recursos.

Por fim, é importante já assinalar, aqui, que a atividade financeira do Estado dirige-se a um fim de assegurar a viabilidade de um projeto de sociedade proposto pela Constituição, que não é um projeto individual, senão coletivo, destinado a satisfazer as necessidades de uma universalidade de interessados.

Desse modo, v.g, o fato de um particular não desejar (na hipótese em que isto fosse possível) destinar parte de seus rendimentos para o fim de contribuir para com as tarefas públicas - porque ele mesmo possui capacidade econômica para obtê-las, ou porque não visualiza os resultados dessa sua contribuição no plano de ações concretas, seja para si mesmo ou para a coletividade - não pode influenciar ou desconstituir seu dever de colaborar para com a ação pública. Isso porque da garantia de algumas pré-condições estruturais e institucionais, depende o próprio exercício das liberdades de todos, mais ou menos assistidos economicamente, e o sucesso e a viabilidade de seu projeto existencial.

O Estado protege as liberdades e deve ser capaz de assegurá-las para o fim de viabilizar níveis mínimos (e universais) de dignidade de vida.

Para tanto, a ação pública requer o acesso e a correta destinação de recursos públicos, em conexão com as necessidades requeridas, e as demandas suscitadas pela sociedade, e tem como finalidade assegurar que o acesso a níveis suficientes de bem-estar se dê de forma universal. Direitos fundamentais constituem a realidade de concretização da ação pública, e o objeto de interesse do Direito Financeiro.

Concretizar níveis de bem-estar implica viabilizar projetos de vida dignos, que decorrem, por sua vez, de condições capazes de assegurar o livre desenvolvimento da personalidade. Estas condições supõem que se deva viabilizar níveis adequados de prestações sociais, econômicas e culturais, além da conservação de qualidade suficientes dos recursos naturais.

Os tribunais internacionais indicam um sentido de indivisibilidade da definição dos direitos humanos e assim também ocorre com os direitos fundamentais afirmados pelas Constituições. Um projeto de futuro é de interesse do Direito Constitucional (de longo prazo), tem no Direito financeiro o seu instrumento, e exige a consideração de que qualidade de vida (maior ou menor) sempre exigirá uma ação mais ou menos intensa do Estado, e representa custos.

Por outro lado, não se pode atingir realidades existenciais dignas sem que se tenha acesso integral a todas essas realidades. Um mínimo de prestações de saúde, ensino, elementos culturais e, sobretudo, a conservação dos recursos naturais, sendo este último, condição para o exercício de todas as demais liberdades.

Não é possível, sob essa perspectiva, exercer as liberdades ou desenvolver plenamente a personalidade do homem em um espaço público inseguro, que não garanta proteção pessoal, reparação contra danos existenciais, degradado, que não proporcione acesso à água potável em quantidade e qualidade suficientes, alimentação, moradia em regiões salubres, e trabalho capaz de lhe conferir dignidade.

Assim, viabilizar projetos de vida dignos implica exigir uma ação pública no domínio do meio ambiente, em igual intensidade do que se requer da ciência e da tecnologia, da educação, da saúde e da cultura.

Dignidade de vida e o desenvolvimento de um projeto de vida digno depende de um compromisso permanente do Estado com um projeto de sociedade definido pela Constituição, e com a concretização de um sentido de invidivisibilidade dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, assegurando a proteção não de uma, mas de todas as realidades existenciais consideradas indispensáveis para o desenvolvimento da vida.

Um mínimo de existência é o resultado da ação do Estado, ao proporcionar os meios e as condições/pressupostos materiais para o exercício de escolhas capazes de viabilizar um projeto que seja digno para si e compatível com os projetos de dignidade de vida admitidos pela ordem jurídica global.

Nesse plano de argumentação, o resultado dignidade de vida requer uma medida de vinculação da ação pública coma transformação da realidade, visando permitir o usufruto de bem-estar, qualidade de vida, e de felicidade por todos os membros da comunidade. Esta medida de vinculação se encontra expressa (poderia sê-lo) sob a fórmula de um nível essencial de prestações (da Constituição italiana), mas não apenas no âmbito dos direitos civis e sociais (como na Constituição italiana), senão também sobre os assim denominados direitos ambientais.[1]

Um mínimo existencial é o resultado da garantia de um nível essencial de prestações por iniciativa de ações do Estado, mas também por ações de colaboração social da comunidade para com a ação pública (tributos ou, ainda, a transformação de comportamentos por influência de um imperativo ou princípio de sustentabilidade, de crescente afirmação nas experiências domésticas e no Direito Internacional Público).

Um imperativo ou princípio de sustentabilidade expõe sua relevância, porque condiciona o modo como as escolhas públicas definem prioridades no âmbito da proteção (a intensidade desta proteção) dos direitos fundamentais.

São escolhas sobre o futuro e o modo como definem estas prioridades influencia a capacidade de uma transformação positiva ou negativa sobre a realidade. Uma escolha que defina como prioridade uma obra pública que prejudica comunidades tradicionais, e esta vem exigir reparação no futuro, produz uma realidade nociva para o interesse público, porque os afetados por aquela escolha equivocada serão todos os membros da sociedade, em benefício daquela comunidade.

O mesmo ocorre quando os investimentos em ensino superior não conseguem demonstrar a obtenção dos resultados esperados, ou quando as escolhas realizadas não eram adequadas para o fim de se atingi-los. Um professor que não aproveita ou não proporciona que o tempo utilizado no processo de ensino-aprendizagem converta-se em resultados úteis para todos (satisfação pessoal e aperfeiçoamento individual e coletivo no grupo) propõe um uso irracional de meios (e de recursos) que não atende a qualquer finalidade de interesse público ou mesmo privada. Não são proporcionadas as prestações sociais do interesse da comunidade acadêmica, e não se atende a um princípio de eficiência econômica. O tempo dedicado a uma ação que não produz consequências demonstra um uso irracional de recursos.

As decisões e escolhas públicas que se revelem equivocadas, erradas, e inadequadas sempre produzirão efeitos e consequências nocivas para uma universalidade.

Para ilustrar esta realidade, um exemplo vinculado mais uma vez aos investimentos no ensino superior é bastante representativo. Diante dos estudos empíricos disponíveis sobre as políticas públicas educacionais, resulta cada vez mais seguro afirmar que o gestor que propuser, como meio para aumentar os níveis de escolarização no ensino fundamental, ações no plano de investimentos em obras (construção de escolas e creches) não conseguirá atender a essa finalidade. Uma ação pública incoerente com a finalidade que pretende atingir produz desperdício, e o uso excessivo de recursos, porque para a finalidade não atendida, deverão ser destinados recursos adicionais para a correção daquela ação inadequada e insuficiente. Estes recursos adicionais destinados seguramente desfavorecem no plano universal e o desenvolvimento de ações que poderiam contribuir para outros projetos de vida.

Outro exemplo que ilustra a relação entre o modo como são realizadas as escolhas, sejam estas públicas ou privadas, e os níveis de bem-estar, qualidade de vida e de felicidade decorrentes dos direitos fundamentais: uma determinada lei municipal assegura o acesso preferencial a portadores de necessidades especiais (deficiência permanente), vagas públicas de estacionamento mediante o registro e renovação anual, sob pena de cessação dos efeitos da autorização.

Em outras palavras, aquele que possui restrições motoras a sua mobilidade, cegueira permanente, deve demonstrar e provar, anualmente que perdeu um membro e que permanece cego (como se fosse possível a restauração e a regeneração dos membros ou das capacidades perdidas) para o fim de ter acesso ao benefício.

Estas escolhas propõem uma forma de se atender a uma finalidade de interesse público que implica maiores restrições à liberdade dos particulares, aumentam os custos da ação pública para assegurar aqueles benefícios, e degradam a dignidade daqueles que deveriam tê-la sob proteção reforçada.

Podemos ilustrar a relação de colaboração que define os processos de concretização dos direitos fundamentais, e de projetos dignos de vida (sua intensidade varia de acordo com o êxito na concretização de maior ou menor conjunto de realidades existenciais, e de direitos sociais, econômicos e culturais), enumerando três exemplos:

Primeiro exemplo: Um copo jogado em uma galeria fluvial sob o argumento de que ninguém viu, que a chuva limpa ou, ainda, que dessa forma as vias públicas permanecerão limpas. Esse copo será conduzido aos rios ou corpos hídricos urbanos, não é degradável, pode contribuir para o acúmulo de resíduos que contaminam as águas e inviabilzam seu consumo pelo homem, poderão ser ingeridos por animais e responder pela sua mortandade, exigirão mais investimentos públicos para o tratamento das águas, poderão obstruir as galerias e favorecer o acúmulo de águas nas vias, comprometendo a cobertura asfáltica e que terá de ser reparada, entre as consequências mais visíveis;

Segundo exemplo: A omissão das prefeituras municipais na fiscalização e no controle do depósito de resíduos nos bairros. O lixo de feiras e de outros bairros é depositado sistematicamente em regiões muito próximas às ruas e às casas de seus moradores, favorecendo a contaminação de solos, proliferação de vetores de doenças e exposição de toda a população a esses fatores de riscos, que, posteriormente, exigirão a elevação das despesas para atender ações do sistema de saúde, no interesse e em benefício dessa população. A redução das despesas em razão da omissão de um dever de proteção estatal pode gerar consequências nocivas para toda a universalidade, pelo aumento de despesas em detrimento do atendimento de outras ações.

Sob a consideração de um imperativo de proteção de um princípio de dignidade de vida, que exige o aperfeiçoamento nos níveis de proteção, a melhoria na qualidade de vida, e a progressividade como vetor de ordenação das escolhas sobre prioridades públicas, a redução das despesas nunca pode ter origem na falha ou na deficiência da proteção de qualquer modalidade de direitos fundamentais, porque a concretização de um mínimo existencial depende da realização coordenada e interdependente de todas as realidades existenciais, sociais, econômicas e culturais, para que possa ser viabilizada.

A intensidade da concretização de cada uma dessas realidades está condicionada à avaliação concreta das necessidades e demandas, combinada com a disponibilidade dos recursos. Se por um lado, as demandas existenciais expõem um imperativo de proteção que determina que intensidade e que setor social deverá ser atendido com maior prioridade, a ponderação sobre esses fatores condiciona o resultado protetivo que poderá ser obtido, ou que seria exigível obter-se por meio da ação do Estado. O primeiro juízo de ponderação propõe o que se deverá proteger, e o segundo juízo determina o que se poderá proteger, e como o será possível.

O terceiro exemplo expõe um diagnóstico sobre a resultados das políticas públicas educacionais no Brasil: um comício que foi marcado para a recepção do presidente dos EUA teve de ser cancelado, porque a maior parte da população não o consegueria compreender. Estes resultados têm origem na ausência de uma política pública consistente e permanente comprometida com uma sociedade culturalmente aberta e não podem ser corrigidos com ações de curto prazo.

No mesmo sentido, um exemplo próximo do segundo também ilustra com clareza a relação de colaboração que define o êxito da tarefa estatal de proteção de um mínimo existencial no plano dos direitos fundamentais, além de definir que a consecução deste mínimo nunca poderá ser obtida por meio da redução das despesas com as prestações existenciais essenciais no âmbito da saúde, ensino, ou outras demandas sociais, econômicas e culturais. A redução na oferta de prestações essenciais não pode ser, nunca, uma alternativa para a redução da despesa pública sob o sofístico e sedutor argumento da eficiência e da economicidade.

Tome-se, para demonstrar o argumento, a seguinte situação de ocorrência cotiana em qualquer capital brasileira:

Em uma grande rede de supermercados, um consumidor constata que derivados de laticínios e ovos encontram-se próximos de sua data de vencimento e, ainda assim, são normalmente disponibilizados e comercializados pela rede de comércio, com os mesmos preços e sem qualquer informação adicional que permita que o consumidor realize uma escolha bem informada, inclusive para o fim de lhe assegurar proteção à sua saúde contra riscos desta natureza, ou contra riscos sanitários.

Trata-se de um ilícito administrativo que, em nome da segurança sanitária, poderia justificar perfeitamente uma ação de polícia por iniciativa dos órgãos públicos de vigiliância sanitária, no município e no Estado. O supermercado poderia ser, preventivamente, interditado e ter o exercício de sua liberdade comercial restringida, circunstancial e justificadamente, mas apenas enquanto fosse suficiente, em nome da proteção da saúde humana.

Ocorre que a ação de polícia administrativa não se tem demonstrado eficiente, chegando ao ponto de sistemática omissão, único comportamento que permitiria compreender tamanha indiferença dos comerciantes ao ponto de proporem livremente a comercialização de produtos proibidos, mesmo que cientes das sanções, e da capacidade de comprometer a saúde humana.

Temos, aqui, um problema que interessa, ao mesmo tempo, uma decisão com efeitos sobre a proteção de direitos fundamentais, e uma decisão sobre os custos das medidas que terão de ser adotadas pelo Poder Público para atingir o resultado segurança sanitária. Que ação poderia proporcionar segurança sanitária e proteção da saúde, sob o ângulo da menor restrição financeira, sem comprometer excessivamente os recursos públicos? Uma ação permanente de fiscalização e monitoramento, de conteúdo essencialmente preventivo, para a qual seria exigível a participação de servidores públicos em rotinas periódicas? Ou, ainda, uma ação estatal condicionada à motivação e iniciativa do sujeito lesado, interessado ou ofendido com o ilícito, que já tivesse experimentado prejuízos? Nesta segunda ação, é visível que a despesa pública para a ação de polícia seria muito menos expressiva, porque os fiscais atuariam exclusivamente quando fosse necessário, e quando se demontrasse concretamente, uma realidade de perigo atual e imediato. Uma despesa pública, nesta realidade, encontraria sua justificação concreta em um juízo de certeza. Uma despesa pública encontraria, na primeira realidade, justificação baseada em um juízo hipotético, de estimativa e baseado em uma racionalidade de prevenção.

A que espécie de racionalidade se encontra vinculada a ação pública para se justificar uma despesa pública? Quando se considera um dever estatal de proteção, a conclusão somente pode ser uma: a todas as alternativas que permitam assegurar este resultado. Um juízo baseado em uma equação custo-benefício propõe uma leitura parcial e deficiente da ação pública, principalmente quando os custos (despesas) das medidas são avaliados de forma parcial.

Retomemos o exemplo do laticínio com o prazo de validade vencido, encontrado em um supermercado da capital. Uma ação preventiva só poderá ser considerada mais onerosa para o Estado, porque não foram considerados todos os custos envolvidos no problema. Por meio de uma ação preventiva, estados nocivos, fontes de riscos e de ameaças à saúde poderão ser eliminados. Esta ação atua positivamente sob o ângulo financeiro se consideramos que serão evitados, estabilizados ou diminuídas desepesas com serviços do sistema de saúde, decorrentes de intoxicações alimentares, distúrbios dos mais distintos, além de mortes pela ingestão de alimentos em estado impróprio para o consumo. Por outro lado, uma ação que atue apenas quando for demonstrada a realidade do dano (e não uma realidade verossímil de ameaça) somente será exposta como uma ação econômica, se aqueles custos externos, mas vinculados à escolha pública, forem desconsiderados. Os custos/despesas da ação de polícia serão inferiores, mas os custos/despesas globais do serviço público serão superiores, porque outros serviços serão demandados em razão da omissão e da deficiência de outro serviço público, neste caso, de fiscalização e de segurança sanitária.

Corrupção gera desperdício (uso irracional dos recursos públicos), assim como escolhas públicas equivocadas, incoerentes, e comportamentos privados incapazes de expor um compromisso responsável com um projeto digno de sociedade.

Um Estado ambiental é um Estado que tem um compromisso reforçado para com o futuro, e deve ser capaz de assegurar a concretização de condições essenciais ao desenvolvimento das escolhas por cada um dos membros da coletividade. Estas, por sua vez, definirão projetos de vida coerentes com o projeto de sociedade daquele Estado ambiental, e que se guiam por um imperativo de integridade ecológica, da Carta da Terra.

Todos estão comprometidos com a viabilidade da existência de todas as formas de vida. Por meio de ações do Estado e do livre exercício de projetos de vida coerentes com os objetivos de um Estado ambiental, assegura-se o livre desenvolvimento da existência humana, e de todas as demais formas de vida. Assegurar a restauração dos processos ecológicos essenciais denota esse compromisso de alcance alargado, que beneficia todas as formas de vida a partir das ações que assegurem a durabilidade da existência humana, em uma relação que não é de autonomia, senão de reciprocidade.

Uma má escolha protege mal os direitos fundamentais, e inviabiliza o acesso a um nível suficiente de qualidade de vida. Sempre que qualquer uma das realidades existenciais não puder ser assegurada em níveis suficientes pelo Estado, seja porque este se omitiu ou atuou de forma insuficiente, ter-se-á consequências no plano da realidade de proteção, que também se revelará incompleta, parcial, deficiente e insuficiente.

Um problema de grande interesse contemporâneo para a proteção de direitos fundamentais tem origem no modo como os Estados compreendem e identificam a visibilidade dos riscos representados pelas transformações climáticas globais. Em razão da divergência entre os cientistas do painel do IPCC e os cientistas céticos, uma escolha prudente indicaria que, diante da dúvida e da incerteza sobre a realidade de riscos que possuem um elevado potencial de comprometer a existência de todos de forma irreversível, uma decisão precaucional admitiria a existência do fenômeno, e justificaria a adoção de ações para a sua mitigação.

Tratando o problema sob o ângulo da atividade financeira, a questão é: em que medida é justificável que sejam destinados recursos públicos para o custeio de ações que atenderão à proteção contra riscos que, sequer, se sabe de sua existência? O que justifica uma ação precaucional? Uma realidade de danos, ou uma realidade verossímil de riscos é suficiente? Vide, neste caso, o exemplo do custeio de tratamentos experimentais pelo Estado, ou, ainda, a questão dos custos das ações de fiscalização, quando se destinem, restritivamente, ao monitoramento dos danos, e não ao controle preventivo e permanente.

5. Conclusões parciais.

O que podemos concluir: O estudo do direito financeiro não envolve apenas a análise de normas financeiras, de orçamento público e das leis 4.320/1964 e LC n. 101/2000. O descumprimento de normas ambientais, civis, urbanísticas, sanitárias produz repercussões sérias para as escolhas públicas e consequências graves para o equilíbrio das relações de solidariedade apontadas pela Constituição, e que devem permear a atividade financeira do Estado.

O aumento dos níveis de poluição atmosférica, a poluição de solos e das águas por atividades econômicas como curtumes, indústrias de bebidas, indústrias químicas, olarias, e outras, resulta, como consequência direta, a perda de qualidade de vida de toda a sociedade, que suporta de forma coletiva os ônus de tais atividades, em proveito de poucos beneficiários. Temos, aqui, a visível descrição de um estado de desequilíbrio nas relações de solidariedade definidas pela Constituição para a garantia das tarefas públicas. Os custos de tais atividades se implicam em proveito individual, não podem ser suportados por toda a coletividade.

Se uma usina hidrelétrica não realiza um estudo prévio de impacto ambiental, que é o instrumento capaz de expor um diagnóstico e um prognóstico do conjunto dos efeitos negativos prováveis relacionados ao projeto, não for suportado pelo operador econômico, é a sociedade que responderá pelos mesmos, suportando as externalidades (perda de qualidade de vida) e os custos públicos das medidas que terão de ser adotadas pelo Estado para mitigar, obstar, recuperar e restaurar os danos produzidos (custos com o sistema de saúde pública, com a despoluição de rios, solos, ar, recuperação de espaços naturais, etc...).

A não imputação dos custos dessas externalidades àqueles que tenham contribuído efetivamente para sua produção gera um estado de desequilíbrio nas relações de justiça, com graves consequências para as relações existenciais de toda a sociedade. Daí a necessidade de, sempre que examinarmos o conteúdo financeiro da atividade estatal, vincularmos essa análise e a situarmos nesse amplo contexto da organização contemporânea do Estado constitucional de Direito, que fortalece as noções de responsabilidade, solidariedade, de cooperação e, sobretudo, de equilíbrio, que vedam a reprodução de cenários de injustiça econômica na repartição dos encargos sociais.

Se é correto admitir que a proteção de direitos fundamentais de forma isonômica depende do envolvimento necessário e da repartição de encargos entre o Estado e toda a coletividade beneficiária de uma rede de proteção social, não o é sustentar que a toda a sociedade deva suportar, financeiramente, os efeitos de escolhas individuais. A sociedade não pode e não deve suportar encargos que decorrem de escolhas e de excessos no exercício de liberdades econômicas e civis de poucos.

Os custos de ações públicas, como a despoluição de um rio, decorrem diretamente de escolhas que foram realizadas previamente por particulares e pelo próprio poder público (escolhas inadequadas, excessos no exercício de suas liberdades). O resultado dessas escolhas equivocadas produz influência sobre a atividade financeira do Estado, que exigirá a colaboração do particular, na repartição dos custos pela proteção de direitos fundamentais, ou de custos para assegurar o exercício de direitos fundamentais que já foram violados. Obrigações de fazer, nesse sentido, resultam em custos ao Estado, custos que geralmente serão suportados pelo particular, na forma de exações tributárias. Por este instrumento, o Estado exige a cooperação e a colaboração financeira de toda a coletividade para o fim de proteger direitos fundamentais. Obrigações de não fazer, em geral, resultam em imposições sem ônus financeiros (v.g, a obrigação de não depositar resíduos ou eliminar dejetos sem tratamento, no solo ou nos cursos hídricos).

Mitigar ou, ainda, procurar a adaptação perante os efeitos das mudanças climáticas globais passa, hoje, por uma franca discussão sobre o comportamento do Estado em relação às suas despesas. Como o Estado aplica os recursos públicos que estão à sua disposição também constitui, neste momento, objeto de relevância para a organização das ações e medidas para o enfrentamento de semelhante cenário de riscos. De acordo com as decisões que o Estado realiza sobre como empregar os recursos à sua disposição, ter-se-á melhores condições para mitigar os efeitos das mudanças climáticas globais. Portanto, as despesas públicas e o comportamento financeiro do Estado também interessa, primeiro, à qualidade de vida, à proteção do meio ambiente, à redução dos riscos existenciais, neste caso, relacionados à definição de políticas públicas capazes de assegurar a proteção da humanidade, perante os efeitos das alterações climáticas extremas.

Problema para reflexão: Nem só de proibições e restrições [ações de comando e controle] depende a definição das escolhas públicas sob o âmbito financeiro. Políticas públicas de transparência, que sujeitem as funções públicas ao dever de proteger e assegurar o acesso à verdade, proporcionando informação suficiente e oportuna sobre os riscos de processos, técnicas, tecnologias, substâncias, e sobre o estado do meio ambiente, expondo a realidade dos fatos sobre alternativas sustentáveis, advertindo sobre as conseqüências de determinados modelos de consumo e de uso dos recursos naturais, asseguram a oportunidade de que melhores escolhas possam ser realizadas. Destas escolhas resultará uma repartição mais ou menos equilibrada dos encargos e dos deveres de solidariedade coletiva para o fim de garantir que um mínimo de condições para a existência de todos possa ser atingido pela ação estatal. Melhores escolhas são realizadas com informação suficiente, sendo razoável admitir que é bastante mais provável que escolhas inadequadas, deficientes ou inoportunas [que terão consequências sob o plano da elevação ou diminuição dos encargos entre toda a coletividade, ou melhoria na distribuição e destinação dos recursos disponíveis] em um cenário de ignorância, no qual a informação necessária não esteja disponível ou não seja acessível a todos os interessados em condições de influenciar de modo relevante o processo de repartição dos encargos.

Concluindo: Um aspecto importante que deve ser considerado ao longo de toda a disciplina é a responsabilidade do gestor público no uso de recursos que têm origem no patrimônio do particular, para o único objetivo de atingir tarefas e atender a necessidades no interesse da coletividade.

A proteção dos interesses dos particulares deriva da noção de accountability. Os excessos da representação se traduzem em desperdício, desvios de recursos, que, por sua vez, se traduzem em omissões lesivas a direitos fundamentais, representando, concretamente, degradação existencial ou diminuição da qualidade de vida. É condição para o desenvolvimento das democracias e existência de instituições que tiveram atribuídos poderes para fiscalizar o exercício dos poderes de representação, protegendo a sociedade da hipótese de excesso nessa representação. Daí a importância para os mecanismos de controle, internos e externos (as comissões internas e os tribunais de contas nos Estados e na União).

Portanto, por que a abordagem que se encontra exposta é importante? A meta é enfatizar, ao longo do curso, uma forte vinculação do que se fará na exposição teórica de conceitos e fundamentos ao plano da realidade fática, do cotidiano, e da rotina de cada um de nós, em nosso dia-a-dia. O passo decisivo para atingir esse objetivo está em ressaltar que as consequências no plano material, refletidas em qualidade de vida, direitos, assistência, ou mesmo da própria garantia de sobrevivência física, decorrem, antes de mais nada, não da mera declaração de direitos ao longo de uma constituição escrita. Todo o conjunto dessas consequências decorre, necessariamente, de escolhas que são realizadas aqui, escolhas sobre como, onde e por qual motivo destinar recursos para determinadas atividades, e para atingir estas e não aquelas prioridades, objetivos, tarefas. Disto decorre a concretização de determinados direitos fundamentais, melhoria de qualidade de vida e a própria sobrevivência física.

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[1] Se não se admitir que a qualidade dos recursos naturias também faz parte de um projeto de sociabilidade e de vida sob o próprio ângulo dos direitos sociais, ou ainda, se não for admitido que a qualidade dos recursos naturais é condição para o exercício de qualquer liberdade (civil, cultural, ou econômica), como reconhece a Suprema Corte das Filipinas.