AULA 2
Tema: Direito financeiro: objeto e definições.
Necessidades públicas e atividade financeira do Estado. Competências
legislativas.
1. Síntese da aula
anterior: (dignidade de vida, direitos fundamentais, e a relação entre escolhas
e conseqüências para a transformação da realidade).
Vamos recuperar o conjunto de problemas da aula anterior
com a análise de um exemplo de grande interesse para os Estados nacionais, para
os atores da sociedade internacional, e para a humanidade.
Diante de um cenário de incerteza, os Estados precisam
realizar suas escolhas sobre como vão enfrentar os cenários que são visíveis, e
de acordo com o conhecimento científico que está disponível neste momento,
mesmo que este conhecimento não tenha condições de expor conclusões.
Nesse contexto, as convenções e tratados climáticos
representam uma escolha da sociedade internacional, sob uma abordagem que
privilegia um princípio de precaução.
Trata-se aqui, de uma escolha que reconheceu serem as
transformações climáticas globais como uma ameaça global capaz de motivar um
compromisso comum.
Como cada Estado-nacional vai contribuir para a redução das
causas das transformações climáticas, que já foram identificadas? Como cada
Estado-nacional vai reduzir emissões? Isto dependerá de decisões nacionais, que
decorrem da capacidade econômica e financeira de cada um, em privilégio de um
princípio de Direito internacional do meio ambiente: as responsabilidades são
comuns, mas diferenciadas (princípio da responsabilidade comum, mas
diferenciada).
O princípio da precaução no contexto de transformações
climáticas globais sugere que, na dúvida, os Estados deverão tomar decisões (e
estarão autorizados a fazê-lo) que favoreçam a existência da vida e sua continuidade, mediante a garantia de sua viabilidade, e a restauração
e proteção dos processos ecológicos terrestres.
Não é possível o exercício de liberdades econômicas sem que
se tenha um mínimo de intervenção, ou alguma medida de intervenção sobre os
recursos naturais. Essa medida mínima de intervenção exige um mínimo de
proteção, ao menos sobre os processos essenciais ao desenvolvimento de todas as
formas de vida. Aqui ganha expressão um princípio da Carta da Terra, o
princípio da integridade ecológica (princípio 5.1).
Os cientistas céticos supõem que as transformações
reproduzem um processo natural de transformações físicas, produzem conhecimento
científico baseado em boa ciência, argumentos válidos, demonstráveis, mas
ciência minoritária. O painel do IPCC é um painel de cientistas, produziu boa
ciência que posteriormente foi contestada, mas ciência majoritária. Não há aqui
a verdade ou verdades, senão divergêcia científica, o que exige uma escolha por
iniciativa das nações. A escolha foi expressa como um consenso global que
reconheceu a relevância das conclusões do painel de cientistas do IPCC e de sua
boa ciência. A consideração dessas conclusões levou à formação de um consenso
global capaz de ter gerado convenções climáticas.
A questão suscitada aqui é: Por que razão os EUA não
subscreveram e não subscreverão uma convenção climática? Porque o que eles
desejam é uma demonstração clara que justifique assumirem custos e despesas
para ações que sequer se sabe sobre sua eficácia e eficiência, ou ainda, sequer
se consegue demonstrar claramente a realidade dos riscos e das ameaças.
Por que uma nação deve atuar mesmo diante da incerteza
científica sobre a realidade dos riscos ou de seus efeitos, ou ainda, diante da
incapacidade de se demonstrar a eficácia das ações custeadas, e a realidade da
causa eficiente?
Se essa causa não se demonstrar eficiente, ou se os efeitos
não puderem ser úteis ao resultado atingido, ter-se-á o uso de recursos que
poderiam ser destinados ao atendimento de realidades concretas e que teriam
condições de ser enfrentadas por meio de ações eficientes ao juízo do
conhecimento científico disponível.
Como justificar para um determinado modelo de sociedade,
que recursos públicos serão destinados para atender medidas como a
transformação da matriz energética, de alto custo, em detrimento de ações mais
concretas que podem atender com maior eficiência estados de risco que precisam
ser removidos (saneamento ambiental, etc...)? Reside nessa indagação o centro
do principal desafio suscitado ao Direito financeiro e ao Direito público
contemporâneo: como assegurar a melhor forma de proteção de um extenso conjunto
de direitos fundamentais, a melhor forma de viabilizar o desenvolvimento de
projetos dignos de vida, em uma realidade de escassez de recursos financeiros?
Passemos para a análise de outro conjunto de exemplos para
o fim de suscitar uma reflexão sobre a relação entre escolhas e os efeitos
dessas escolhas para a proteção de realidades dignas, por meio de direitos
fundamentais.
A redução dos riscos existenciais como tarefa de Estado é
uma tarefa comprometida com um princípio de sustentabilidade. Este enfatiza a
finalidade de se assegurar a durabilidade e, sobretudo, a viabilidade da vida.
Se desejamos um projeto viável de futuro, é imperativo que toda a ação do
Estado e também assim, a ação social, guiem-se e proponham cenários que
favoreçam esse objetivo.
Sendo assim, quando se afirma a inviabilidade de se
reconhecer um projeto digno de vida em um cenário no qual há bairros e
loteamentos em sítios contaminados, residências localizadas no entorno de aterros
sanitários, usinas nucleares, aeroportos, indústrias químicas, olarias,
fábricas de pneus, e quando se afirma que não é possível exercer liberdades em
um meio ambiente contaminado, não se está propondo a eliminação de todas as
fontes e causas de poluição.
Estamos trabalhando aqui com a noção de limites de
tolerabilidade. O que a sociedade, um projeto de vida definido pela ordem
jurídica daquela realidade propôs? O que aquela ordem jurídica define como
socialmente admissível para o exercício das liberdades?
Note-se que aqui há uma forte exposição de uma necessidade
de conciliação entre proteção do meio ambiente e liberdades econômicas. Se
estas são importantes para o desenvolvimento de uma vida digna e de níveis de
bem-estar socialmente desejáveis, é relevante reconhecer que nenhuma liberdade
econômica pode ter origem senão a partir do uso e do acesso aos recursos
naturias. Portanto, em uma ótica utilitária e egoísta, a sua proteção, e a
proteção de sua durabilidade, também interessa à durabilidade da atividade
econômica.
Então não se trata de eliminar a poluição e a contaminação,
senão de reduzir-se os riscos, eliminando-se os níveis que possam representar
comprometimento da existência humana. Como se faz isso? A partir de
conhecimento científico, de informação e, sobretudo, de decisão bem-informada,
que a partir de cenários verossímeis, prováveis, esperados, possa ser adotada
uma medida capaz de mitigar, ou de não permitir o avanço de cenários
indesejáveis, ou nocivos à sociedade, ou ainda, de cenários com riscos
catastróficos que não podem ser revertidos sob qualquer ângulo, financeiro,
social ou ambiental.
O risco catastrófico e o risco irreversível geralmente
definem e influenciam escolhas precaucionais, e deste modo, justificam despesas
para o financiamento de ações sem prova conclusiva de que serão NECESSÁRIAS.
Indaga-se: porque se deve autorizar uma despesa com uma ação que sequer tem
condições de demonstrar NESTE MOMENTO, sua NECESSIDADE? Porque em uma realidade
em que estudos científicos, ainda que inconclusivos, têm condições de propor um
cenário de efeitos irreversíveis, a simples hipótese de que ocorram, podem
gerar consequências que, se concretizadas, não poderão ser enfrentadas ou
seguradas. NESTES casos, e este é o caso das transformações climáticas globais,
a despesa pública tem origem legítima na interferência de um princípio de
precaução.
Portanto, se a realidade dos riscos ou da ameaça se
revelem, à luz do conhecimento científico disponível, de tal monta que, se na
hipótese de ocorrerem, produzirão conseqüências irreversíveis ou que não possam
ser reparadas sob qualquer ângulo, os Estados poderão e deverão realizar
despesas a partir deste momento, visando não permitir que as ameaças se
concretizem. As ações poderão ser preventivas ou precaucionais, de acordo com a
qualidade da informação científica disponível (ou não), conforme será analisado
no último ano, na disciplina Direito Ambiental.
A qualidade do meio ambiente é um aspecto do bem-estar e
integra qualquer projeto de existência humana digna em uma república como a do
Estado ambiental brasileiro. Ruído representa poluição sonora, perturbação do
meio ambiente que afeta a privacidade e esta conexão entre direitos ambientais
e direitos de liberdade clássicos já foi reconhecida no caso do aeroporto de
Heathrow, pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos.
Outro aspecto relevante que merece ser enfatizado é o da
impossibilidade de se distinguir entre direitos de liberdade e direitos à
prestação no plano dos custos para o seu financiamento. Todos envolvem juízos
sobre despesas. Assim, a proteção do direito à vida privada e à propriedade
nunca seria possível sem que fosse instituído um sistema de justiça eficiente,
que proporcionasse reparação e prevenção contra danos pessoais e contra os bens.
Por outro lado, não é possível se falar em proteção
suficiente sob uma perspectiva que favoreça qualquer uma daquelas realidades,
em detrimento de outra. Bem-estar somente é possível a partir da garantia de
acesso aos benefícios de todos os direitos fundamentais, ainda que em níveis
mínimos e variáveis. Esta modulação dependerá de cada contexto social,
econômico e cultural. Algumas sociedades estarão mais aptas financeiramente e
proporão demandas de maior intensidade na proteção de direitos de liberdade, outras
de direitos sociias, outras de todos os direitos em níveis máximos. Outras
nações terão desafios de outras ordens para a ação pública, no plano de
políticas migratórias, acesso ao trabalho, desenvolvimento de setores da
economia, entre outros.
Nessa perspectiva, se a proteção de todos os direitos
representa alguma medida de comprometimento dos recursos financeiros de um
modelo de Estado, confirmando a tese de Cass Sunstein, é de outra obra do
jurista norte-americano que podem ser extraídas contribuições para o
aperfeiçoamento do desenvolvimento humano em uma perspectiva integrativa e
holística, que relacione a natureza e o bem-estar humano em um processo de
reciprocidade onde as ações e benefícios atuam de forma integrada.
Sunstein e Thaler acentuam que o modo como são realizadas
escolhas e tomadas as decisões contribuem decisivamente para um projeto de
futuro, de bem-estar e de felicidade. O modo como a ação pública define suas
tarefas e seus comportamentos, como favorece o comportamento social e influencia
a transformação de comportamentos pode contribuir decisivamente para a
transformação da realidade, com benefícios existencias para toda a coletividade
(licitações sustentáveis, aquisição de produtos ambientalmente certificados,
investimentos no serviço público de transporte, tecnologias que estimulem o
desenvolvimento de alternativas energéticas economicamente viáveis e
sustentáveis).
No contexto das transformações climáticas extremas, convém
analisar um exemplo mais concreto de medidas que sejam tomadas nesse plano. Uma
delas é o investimento em políticas de desenvolvimento de novas tecnologias
para uma matriz energética menos poluente. Ou no sistema de saúde, a partir de
diagnósticos que apresentem a elevação nos números de atendimento por doenças respiratórias,
ou ainda, por meio de leis restritivas do uso do cigarro com a mesma
finalidade.
Para exemplificar a necessidade de colaboração entre o
Estado e a sociedade na gestão racional da despesa pública, tomemos como
exemplo as campanhas publicitárias que enfatizam a mudança de comportamentos
para auxiliar no combate às causas da doença. Aquele que não adotar as medidas
preventivas compromete a eficiência da ação. Esta escolha, privada, é nociva
para o interesse de uma coletividade.
Da mesma forma, se o Estado exige que suas compras terão de
exigir a demonstração da segurança ambiental dos produtos, a sociedade será
influenciada a atender estas escolhas, reduzindo o desmatamento ilegal e reduzindo
a despesa com as ações de polícia, permitindo que estes recursos sejam
destinados para outras ações igualmente prioritárias.
A existência digna de todos nós depende de que o Estado se
comprometa a afastar todos os riscos que a ameacem, e assegure a realização das
condições de infra-estrutura, serviços e prestações que sejam essenciais ao seu
desenvolvimento.
O Estado deve ser capaz de favorecer as condições para o
desenvolvimento de projetos dignos de vida, que significa em última análise,
uma existência duradoura e decente.
Para tanto, o Estado deve viabilizar o desenvolvimento da
pessoa, assegurando-lhes o acesso a níveis essenciais de várias prestações,
porque a insuficiência, a falha, a omissão e a incapacidade estatal. Uma
atuação parcial e limitada do Estado, que favoreça serviços de saúde e ensino,
mas que não consiga auxiliar no acesso à moradia salubre e digna, representa um
defeito na proteção, passível de ser corrigido pela ação das outras funções de
Estado.
O valor dignidade de vida se encontra definido pela
Constituição como um objetivo da república, interage com uma cultura universal
de direitos humanos, e condiciona a ação do Estado e o exercício de todas as
liberdades econômicas.
A Constituição define um projeto de futuro, que é
viabilizado e concretizado por meio das escolhas realizadas no âmbito de um
orçamento, cujas prioridades serão definidas de acordo com as necessidades de
proteção, que são diferenciadas e variam de acordo com contextos sociais,
econômicos e culturais.
Proteção para o meio ambiente, despoluição de recursos
hídricos, inclusão digital e social de grupos vulneráveis, proteção de povos
indígenas, mobilidade urbana, acessibilidade aos portadores de necessidades
especiais, políticas de habitação. São todas ações que propõem um modelo e
programa de futuro, limitado a quatro anos, e no plano do desenvolvimento
permanente do objetivo dignidade, devem ser coerentes e ser capazes de se
comunicarem entre os mandatos e gestões. A interrupção entre as ações
desfavorece a continuidade de um projeto de futuro para a existência do homem,
e de desenvolvimento de sua personalidade, por meio de prestações universais e
coletivas.
Serviço público decente é tarefa de Estado e sua inexecução
representa um direito a partir da consideração do valor dignidade. O princípio
contribui para a fundamentação de um conjunto de direitos, sociais, culturais,
ambientais, econômicos. Note-se o caso do aeroporto de Heathrow, julgado pelo
Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Qualidade de vida foi identificada como
vinculada ao direito à privacidade e justificou a derivação de um direito ao
meio ambiente salubre e livre de riscos que possam inviabilizar sua existência.
Aumentar o serviço público de transporte favorece a
retirada de veículos, contribui para a redução de emissões. Mas por outro lado,
como esse serviço é prestado? É digno tomar um ônibus nas condições que se
verifica diariamente, com superlotação e desconforto? A falha no serviço
público e o controle social do serviço público justifica direitos, e reforça
que os objetivos do Estado são: a) favorecer a existência digna do homem,
permitindo que se desenvolva como pessoa; b) concretizar o interesse público,
cujo conteúdo é redefinido e ganha complexidade nas sociedades contemporâneas,
suscitando tarefas cada vez mais extensas. Proteção social e proteger o interesse
público nestas sociedades impõe desafios em setores antes inimagináveis, da
segurança pública ao meio ambiente; c) assegurar que os recursos financeiros
disponíveis consigam proporcionar os níveis de bem-estar esperados e propostos
por um projeto político, de uma Constituição, e de uma cultura universal dos
direitos humanos.
Analisando os exemplos referidos na aula anterior, pode-se
constatar que:
a.
o aumento da despesa em razão de
decisões privadas equivocadas e falha na ação de monitoramento do Estado. A
consequência foi a elevação nas despesas de reparação e recuperação dos danos
(vazamento de óleo);
b.
A ausência de políticas de
saneamento ambiental representa a elevação na despesa com ações no sistema
único de saúde;
c.
O excesso no exercício de
liberdades econômicas (queima de palha de cana-de-açúcar) e a falha na ação de
polícia administrativa representa um efeito nocivo para toda a coletividade,
que perde qualidade de vida, respirando ar contaminado com índices inaceitáveis
de enxofre;
d.
A ausência da ação de polícia
administrativa sobre o desamatamento de biomas representa elevados custos de
restauração dos danos, além de perda de qualidade de vida, com a redução dos
estoques de água potável, erosão de solos, perda de produtividade, diminuição
da produção de alimentos, perda de serviços ecossistêmicos.
PORTANTO, escolher mal implica proteger mal o conjunto de
necessidades essenciais e indispensáveis a existência do homem.
Proteger mal tais necessidades implica obstar as condições
para o livre desenvolvimento da personalidade em um espaço democrático.
2. Problemas importantes:
Analisando todos os problemas expostos poderíamos enumerar
como principais questões de interesse para a disciplina as seguintes:
·
Por que é necessária a proteção?
·
Que nível de proteção se deseja,
está proposto pela ordem constitucional, e deve ser esperada pela sociedade?
·
Quanto custa proteger para
assegurar um nível que seja admitido como essencial?
Contextualizando-os com o
tema desta segunda aula, podemos enumerar as seguintes: Qual
é e como pode ser visualizada a relevância da atividade financeira do Estado?
Qual é a utilidade do estudo do conjunto de conceitos e estruturas que serão
expostas ao longo do ano?
Pensem no dia-a-dia de cada um, no cotidiano. Nas
liberdades, no acesso à serviços públicos e em atividades das mais corriqueiras
como manter limpos os espaços públicos, tomar decisões sobre o uso racional da
água, não desperdiçando a energia elétrica. Tudo isso somente tem condições de
chegar ao nosso uso a partir de iniciativas do Estado.
Não há direitos fundamentais gratuitos, sem custos. Quando
o Estado prioriza a transformação de realidades existenciais dos mais pobres, e
menos favorecidos, transferindo-lhes renda e qualidade de vida, tributando
menos ou destinando de forma reforçada, ações assistenciais e serviços, deriva
estas ações de fontes de recursos, que têm que ter uma fonte.
Geralmente são impostos, pagos primeiro com fundamento em
um princípio de solidariedade, e contemporaneamente, a partir da necessidade de
se concretizar um padrão mínimo, para todos, de qualidade de vida.
O mesmo ocorre quando
vias públicas precárias produzem acidentes que não produzem apenas prejuízos
privados aos usuários pela elevação das despesas com frete de cargas,
manutenção dos veículos ou reparação dos danos materiais. O excesso destas
despesas priva os particulares da possibilidade de realizar outras escolhas
sobre um projeto de desenvolvimento digno de sua vida, destinando seus recursos
para a satisfação de outras possibilidades de bem-estar e de felicidade. Por
outro lado, a falha na manutenção das estradas gera conseqüências igualmente
nocivas para uma universalidade de interessados porque acidentes podem gerar
contaminação de solos e recursos hídricos pelo óleo e pelos combustíveis descartados.
Estes eventos geram a elevação de despesa pública para a reparação dos danos
ambientais, para a descontaminação dos recursos hídricos, para a correção de
solos, recuperação da biodiversidade, e para proporcionar a reconstituição das
condições essenciais para o desenvolvimento de projetos dignos de vida no
espaço afetado. Tudo isto gera despesas, que para além de afetar interesses
econômicos privados e realidades individuais, também alcança toda a
coletividade, que é destinatária dos recursos públicos. A escassez destes exige
da ação pública, um compromisso severo com a responsabilidade e a racionalidade
na relação entre a destinação e os efeitos dessas escolhas. O uso irracional
pode propor uma despesa que atenda a um interesse público, mas se para o seu
atendimento a despesa se revele ineficiente, excessiva e desproporcional (se
poderia ser eliminada ou mesmo mitigada se escolhas melhores fossem realizadas,
ou se a ação estatal fosse oportuna), o interesse público já estará sendo
lesado, porque poderia ser melhor atendido, se com o mesmo conjunto de
recursos, uma realidade de demandas mais extensa pudesse ser alcançada pela
decisão.
Duas expressões são priorizadas aqui: responsabilidade e informação. Melhores decisões são decisões que
terão como conseqüência, um uso mais racional dos poucos recursos que estão à
disposição do Estado para concretizar um conjunto indeterminado de deveres,
tarefas e de necessidades, que terão de ser escolhidas. Prioridades terão de
ser definidas. Lixo demanda despesa pública para sua remoção. Caso contrário,
demandará despesa pública em serviços de saúde. Menos resíduos resulta em
reserva de recursos para outras finalidades mais relevantes e necessárias no
momento.
3. Objeto, conceitos e definições do Direito financeiro
Direito financeiro e Ciências das finanças: a Ciência das
finanças trata de atividade fiscal, que se restringe à captação de recursos
para o custeio de todas as atividades estatais. O Direito financeiro trata do
conjunto de relações vinculadas à atividade financeira do Estado, onde a
atividade fiscal é um de seus componentes, na medida em que responde a pergunta
de como as necessidades públicas são custeadas. Também deverá responder a de
quem obtém, e quais são as necessidades que devem ser custeadas pelo Estado,
além das demais relações de aplicação, execução e controle da relação receita,
despesa e planejamento.
Atividade financeira, que constitui o objeto do Direito
financeiro, compreende arrecadação de receita, gestão e realização do gasto, a
fim de atender necessidades públicasm que não se confundem com prioridades
públicas. Aquelas são definidas pela Constituição. As últimas são escolhidas
pelo chefe do Poder Executivo ao encaminhar a mensagem de lei orçamentária.
Em sua dimensão objetiva, o Direito financeiro é um
complexo de princípios e normas de organização da atividade financeira do
Estado, que por sua vez, representa o conjunto de atividades estatais e dos
entes criados pelo Estado, para o fim de se obter receita e realizar despesas
no cumprimento de suas tarefas essenciais. Estas representam, em última
análise, a proteção e a concretização de direitos fundamentais, através das
várias formas de atuações possíveis, por iniciativa do Estado ou por terceiros
que executam algumas das funções estatais.
Não se trata de Direito tributário porque este regula um
aspecto específico da atividade financeira, que é a obrigação de entregar
dinheiro que formará o patrimônio do Estado. Esta é só uma parte do conjunto de
receitas integradas e relacionadas à atividade financeira do Estado.
A Constituição brasileira propõe um modelo de concorrência
legislativa entre a União, Estados-membros e Distrito federal (artigo 24,
inciso I, c/c §§ 2º, 3º e 4º, da CRFB), orgnaizado da seguinte forma:
a) União: normas-gerais;
b) Estados-membros e Distrito federal: complementação e
suplementação. A primeira resulta da especificação e das condições de aplicação
de norma geral pré-existente. A segunda, de inovação primária da ordem jurídica
diante da ausência de normas gerais produzidas pela União. Neste caso, o
exercício é pleno pelos Estados, e as normas resultantes desta atividade
perderão eficácia na superveniência da atividade legislativa da União.
c) Municípios não possuem competência para legislar em
matéria financeira.
5.
As necessidades e as prioridades públicas.
Necessidades
X Prioridades: se é simples concluir
que a necessidade de residir em um imóvel de 1.000 metros quadrados
não pode ser definida como prioridade (que define a causa que justifica uma
ação pública universal e isonômica), é um pouco mais complexo propor que o
acesso ao ensino superior é necessário e também seria uma prioridade. A questão
se impõe para resolução sob o ângulo de um mínimo existencial, que somente pode
ser obtido por meio de deveres de proteção vinculados a um nível essencial de
prestações. O Estado possui o dever de proteger direitos fundamentais, e a este
dever se encontra vinculado, mas a intensidade de seu exercício não se encontra
definida ao ponto de garantir um direito individual a uma vaga nas instituições
públicas de ensino superior, a todos os cidadãos, ou ainda, o direito a uma
residência a todos os membros da coletividade.
Façamos uma reflexão sobre o problema.
Não seria difícil admitir que existe um direito fundamental à saúde, e um
direito fundamental a níveis adequados de desenvolvimento cultural, ambos
atribuídos de modo universal, e decorrentes de deveres atribuídos ao Estado pro
meio da Constituição e de instrumentos internacionais de direitos humanos.
Portanto, há deveres estatais de proteção que requerem a ação pública visando
viabilizar uma existência digna de todos, concretizando realidades qeu possam
favorecê-la, aqui limitadas à saúde e à educação. Mas será que dessa realidade
de deveres estatais se poderia justificar um direito atribuído coletivamente
aos moradores de um bairro, à construção de uma creche? O que justifica a
construção da creche naquele bairro e não em outro bairro, já que todos possuem
tal direito? Por que priorizar aqueles moradores e não estes? O mesmo ocorre em
relação ao direito à saúde. Por que construir um hospital neste município e não
em outro? Por que priorizar neste momento, ações que visem melhorar a qualidade
de vida de populações vulnerávies em detrimento de portadores de necessidades
especiais? Porque antecipar decisões de proteção em benefício desta e não
daquela comunidade ou conjunto de interessados?
Um dever de proteger um determinado
direito fundamental decorre da ordem jurídica (Constituição, instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos e da intervenção legislativa) e
atende a prioridades. Esse dever que decorre da ordem jurídica condiciona a
JUSTIFICATIVA da ação pública (Por que proteger?).
A DISPONIBILIDADE econômica e financeira
justifica a INTENSIDADE da ação.
Um dos problemas de maior interesse ao
Direito Público e para uma teoria dos direitos fundamentais contemporâea surge
quando se requer a resolução da seguinte questão: há aqui um direito
fundamental?
A tensão entre necessidades e prioridades
no âmbito de um processo de decisão que interessa a proteção de direitos
fundamentais é fortemente CONDICIONADA pela valoração de que conteúdo pode ser
exposto por um conceito de dignidade de vida.
Quando o Estado falha ao não proporcionar
a possibilidade de se desenvolver um projeto digno de vida pode surgir um dever
de proteger um direito fundamental. Aqui se remete à discussão sobre um
imperativo de proteção, que nos remete a uma reflexão posterior, sobre QUEM deve
proteger os direitos fundamentais. É uma decisão EXCLUSIVA do Poder Executivo,
quando escolhe prioridades no âmbito de um orçamento? Do Poder legislativo,
quando define direitos e a condição de seu exercício? Ou também cabe ao Poder
Judiciário zelar pela proteção quando as demais funções falham (imperativo de
proteção)?
Podemos expor vários graus de
indignidade:
a) Um idoso que vende sorvetes no centro
da cidade sem feriados ou descanso nos fins de semana;
b) A deficiência no atendimento bancário,
nos serviços de saúde e aos usuários do serviço de transporte coletivo;
c) O lançamento de anões por circo
francês.
É possível reconhecer em todos os
exemplos, deveres de proteção do Estado, e falhas na execução destes deveres.
No primeiro, reconhece-se falhas na proteção de um direito à assistência e
previdência. No segundo, serviços públicos ineficientes violam o direito a uma
boa administração, e no terceiro, um grave conflito entre direitos fundamentais
(liberdades econômicas, liberdade contratual, e direito à vida digna) que
suscita, inclusive, a necessidade de se conceber um dever de proteção contra si
mesmo. O Estado possui um dever geral de proteger direitos fundamentais, todos
eles, e na medida que se permita viabilizar o acesso universal a níveis essencias
de prestação, e esse dever também alcança um dever de proteção contra si mesmo.
Temos aqui a exposição clara da linha que
distingue as necessidades, as necessidades que precisam ser concretizadas pela
ação do Estado (as públicas, que são definidas e identificadas por deveres
estatais de proteção) e as prioridades, estas analisadas adiante. Uma
necessidade precisa ser atendida e protegida pelo Estado se decorrente de um
dever de proteção, cuja fonte, por sua vez, é a ordem jurídica (doméstica ou
convencional), mas nem todas as necessidades públicas que suscitem um dever de
proteger, produzirão um dever de igual proteção, ao menos como se concebe
superficialmente um imperativo de isonomia.
O Estado só está obrigado àquelas
prestações que reflitam o resultado de suas capacidades na transformação
universal de realidades existenciais, proporciondo-lhes a partir dessas
condições infra-estruturais e da composição de uma série de realidades (social,
econômica e cultural), a possibilidade de se definir, no âmbito destas
condições e deste contexto, um projeto digno de vida. Obriga-se, portanto, a
proporcionar condições essenciais ao desenvolvimento da vida, sob o ângulo da
universalidade. Diante da escassez de recursos, e da necessidade de proteção
universal, o aperfeiçoamento da proteção normativa sempre implica um juízo de
elevação das despesas, e assim, enfatiza a necessidade de que a extensão de tal
dever de proteção esteja condicionado por uma referência de nível mínimo de
prestações. Estas são o instrumento que viabiliza um mínimo existencial, sendo
este o objetivo de Estado. O aperfeiçoamento da proteção pela definição de
novos direitos ou benefícios existenciais sempre refletirá consequências no
plano financeiro, e sempre exigirá um juízo de decisão sobre prioridades, que
serão definidas a partir das necessidades. Todo direito fundamental deve ser
protegido (dever de proteção), mas nem sempre o serão da mesma forma (a
intensidade da proteção requer um juizo sobre prioridades públicas).
O SE e QUANDO proteger nos remete à
definição de direitos fundamentais, porque são expostos os DEVERES DE PROTEÇÃO.
As questões sobre se é devido proteger e quando se deve proteger são resolvidas
pelo reconhecimento de um dever de proteger que tenha sido definido pela ordem
jurídica.
O COMO proteger vincula-se a definição
das PRIORIDADES PÚBLICAS e define O QUE proteger, remetendo sua resolução a uma
decisão sobre alternativas expostas ao juízo de disponibilidade financeira do
Executivo.
Para ilustrar a racionalidade e a
eficiência de uma escolha pública, tomemos como exemplo a decisão sobre o
modelo de transporte público ideal para atender ao interesse coletivo em uma
perspectiva de futuro. Em notícia recente publicada em periódico da capital, o
gestor responsável por tais ações foi claro ao consignar que já foi realizado
empréstimo para a contratação de BRT. Entretanto até este momento sequer houve
um estudo técnico, ou uma decisão que pudesse ter exposto esta decisão como o
resultado de escolha entre as alternativas disponíveis, e por meio da
consideração e ponderação entre as vantagens e desvantagens de cada opção,
visando indicar qual delas permitiria satisfazer com mais eficiência o
interesse público.
5.1. As necessidades públicas, as
prioridades públicas e a atividade financeira do Estado.
§ O problema dos custos dos direitos, dos serviços e das estruturas que
para existirem, dependem de recursos, e envolvem despesas: qual é o objetivo e
o destinatário a ser atingido por este processo? A
coletividade, e a garantia da dignidade da pessoa humana em um Estado social e
democrático de Direito.
§ O problema do estabelecimento das prioridades e das necessidades: que tipo de necessidades? Quem estabelece as prioridades? O que deve
ser o critério para essas prioridades?
É o próprio Estado quem estabelece as necessidades que
deverão ser consideradas como públicas, fixando, portanto, as prioridades que
deverão ser atendidas pela atividade financeira.
Sob essa perspectiva, necessidades públicas podem ser
compreendidas como prestações públicas a que o Estado está obrigado, através de
suas funções (Judiciária, legislativa, e executiva), tendo como fonte primária
a ordem constitucional ou a ordem jurídica em geral.
Em primeiro lugar é a função executiva, mas não se
restringe a ela. É a ordem constitucional que define as necessidades públicas,
o Executivo quem define as prioridades, e o legislativo quem as concretiza,
através das leis orçamentárias, e o Judiciário quem as implementa ou corrige as
prioridades pré-definidas pelo Executivo, em hipóteses excepcionais.
No plano do Executivo e do Legislativo, as prestações
públicas são em geral aquelas relacionadas a serviços públicos, e sua execução
é compartilhada entre União, Estados-membros e municípios. Cite-se, por exemplo
aquelas atividades enumeradas no artigo 21, da CRFB de 1988.
Veja-se, por exemplo, que o texto cuida de:
“Art.
21. Compete à União:
I - manter relações com Estados
estrangeiros e participar de organizações internacionais;
II - declarar a guerra e celebrar a
paz;
III - assegurar a defesa nacional;
IV - permitir, nos casos previstos em
lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou
nele permaneçam temporariamente;
V - decretar o estado de sítio, o
estado de defesa e a intervenção federal;
VI - autorizar e fiscalizar a produção
e o comércio de material bélico;
VII - emitir moeda;
VIII - administrar as reservas cambiais
do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de
crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência
privada;
IX - elaborar e executar planos
nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico
e social;
X - manter o serviço postal e o correio
aéreo nacional;
XI - explorar, diretamente ou mediante
autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos
termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um
órgão regulador e outros aspectos institucionais; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de
15/08/95)
XII - explorar, diretamente ou mediante
autorização, concessão ou permissão:
a) os serviços de radiodifusão sonora,
e de sons e imagens; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de
15/08/95:)
b) os serviços e instalações de energia
elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com
os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;
c) a navegação aérea, aeroespacial e a
infra-estrutura aeroportuária;
d) os serviços de transporte
ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou
que transponham os limites de Estado ou Território;
e) os serviços de transporte rodoviário
interestadual e internacional de passageiros;
f) os portos marítimos, fluviais e
lacustres;
XIII - organizar e manter o Poder
Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Distrito Federal e
dos Territórios;
XIV - organizar e manter a polícia
civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal,
bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de
serviços públicos, por meio de fundo próprio; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de
1998)
XV - organizar e manter os serviços
oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional;
XVI - exercer a classificação, para
efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão;
XVII - conceder anistia;
XVIII - planejar e promover a defesa
permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as
inundações;
XIX - instituir sistema nacional de
gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos
de seu uso;
XX - instituir diretrizes para o
desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes
urbanos;
XXI - estabelecer princípios e
diretrizes para o sistema nacional de viação;
XXII - executar os serviços de polícia
marítima, aeroportuária e de fronteiras; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de
1998)
XXIII - explorar os serviços e
instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a
pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o
comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes
princípios e condições:
a) toda atividade nuclear em território
nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do
Congresso Nacional;
b) sob regime de permissão, são
autorizadas a comercialização e a utilização de radioisótopos para a pesquisa e
usos médicos, agrícolas e industriais; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de
2006)
c) sob regime de permissão, são
autorizadas a produção, comercialização e utilização de radioisótopos de
meia-vida igual ou inferior a duas horas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de
2006)
d) a responsabilidade civil por danos
nucleares independe da existência de culpa; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de
2006)
XXIV - organizar, manter e executar a
inspeção do trabalho;
XXV - estabelecer as áreas e as
condições para o exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa.”
Quanto aos Estados-membros e ao Distrito federal temos
que:
“Art. 25. Os Estados organizam-se e
regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios
desta Constituição.
§ 1º - São reservadas aos Estados as
competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição.
§ 2º - Cabe aos Estados explorar
diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na
forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação.”
Por fim, em relação aos municípios:
“Art. 30. Compete aos Municípios:
[...]
V - organizar e prestar, diretamente ou
sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local,
incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
VI - manter, com a cooperação técnica e
financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino
fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de
2006)
VII - prestar, com a cooperação técnica
e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;
VIII - promover, no que couber,
adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do
parcelamento e da ocupação do solo urbano;
IX - promover a proteção do patrimônio
histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal
e estadual.”
A técnica de identificação das necessidades públicas na
Constituição, e por conseqüência, de identificação daquelas atividades que são
consideradas como serviços públicos, a serem prestados no interesse da
coletividade, deriva da identificação de um dever. Sempre que for possível
identificar que o texto constitucional [ou a própria ordem jurífica em geral]
atribuiu deveres de atuar em determinados domínios, à União, aos
Estados-membros e aos municípios, estes entes estão vinculados a prestar tais
atividades.
A outra técnica está relacionada à possibilidade da
associação das atividades, àquelas de que cuida o artigo 175, caput, da
CRFB:
“Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei,
diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de
licitação, a prestação de serviços públicos.”
Os deveres de prestar serviço público surgem de
competências, e estas são definidas pela Constituição, mas também podem sê-lo
por leis. Todas essas atividades que são impositivas para prestação pelo
Estado, e que se destinam atender a coletividade, interessam ao exercício da
atividade financeira estatal. Isso não quer dizer, entretanto, que pelo fato de
serem serviços públicos, só podem ser Executadas pelo Estado. São, quando
executadas pelo Estado, custeadas por recursos públicos, mas podem ser
executadas pelos particulares. Ocorre que o fato de não ser executado pelo
poder público não desnatura a natureza pública da atividade, pois a
titularidade continua sendo do Estado. Só se transfere sua execução, que
continua a se destinar ao atendimento da coletividade.
Embora o principal conjunto de necessidades públicas esteja
concentrado entre aquelas caracterizadas como serviços públicos, pelo texto do
artigo 175, da CRFB de 1988, o Estado também atende outras necessidades.
São elas:
a)
regulação da atividade econômica
(artigo 174, caput);
b) intervenção no domínio econômico (artigos 173, e 177): o
Estado participa diretamente do processo produtivo, que só pode acontecer
quando indispensável à segurança nacional ou ao relevante interesse coletivo. E
este deve ser definido por lei. Trata-se de exceção porque a regra definida
pela Constituição econômica brasileira baseia-se no princípio da livre
iniciativa, ou da liberdade de iniciativa econômica (artigo 170, caput)
que representa o quê? Que particulares têm preferência na atuação no domínio
econômico, já que a ordem econômica ainda é a capitalista, na qual o processo
produtivo e as relações têm origem na iniciativa de particulares, e não na
iniciativa do Estado, assim como ocorre com a apropriação dos bens e meios de
produção. São relações vinculadas à atuação dos particulares, e não do Estado.
Esta é acessória.
Como afirma o professor Régis Fernandes de Oliveira (2006,
p. 42), o Estado não pode explorar diretamente e não pode ingressar livremente
no mercado para produzir riquezas, pois não é essa sua tarefa constitucional.
Desse modo, só pode intervir e ingressar diretamente no
processo produtivo se e nas condições definidas por lei, atendido o interesse
da segurança nacional e relevante interesse coletivo. A ordem econômica é livre
para os particulares, mas não é livre para o Estado, que só atua exercendo
funções de controle, fiscalização e planejamento (artigo 174), sendo este indicativo
para o setor privado e vinculante para as funções públicas. A vinculação
resulta no instrumento orçamento, estando ali a planificação das decisões
políticas, que se converterão em receita (recursos de entrada permanente no
patrimônio público) e despesas (gastos), sempre em função de necessidades e
prioridades fixadas pelo Poder Executivo.
b)
exercício do poder de polícia;
Portanto, de competências, decorrem deveres, resultando,
por sua vez, em prestações obrigatórias ao Estado. O conjunto, a extensão e a
natureza dessas prestações são definidos pela Constituição.
Nesse sentido, vale ressaltar que a interpretação vem sendo
flexibilizada no interesse da valorização do princípio da dignidade da pessoa
humana, que é um dos fundamentos da República, fixado logo no artigo 1º, inciso
III, da CRFB de 1988:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana;”
(destacou-se).
O indivíduo no Direito financeiro deve ser compreendido
como o centro da atividade estatal, e não como sujeito obrigado por sua atuação
fiscal, e muito menos, como objeto do exercício de prerrogativas do Poder Público,
de arrecadar receita, e principalmente a tributária. Cabe ao Estado proteger e
assegurar o livre desenvolvimento da personalidade humana e níveis dignos de
vida, e não destruí-los, subtraindo suas capacidades e potencialidades, de
desenvolver suas liberdades civis, econômicas, sociais e culturais.
A atividade financeira do Estado só pode ter como
finalidade a proteção de necessidades públicas, convertidas em prioridades após
as decisões e escolhas que são realizadas no processo de aprovação e deliberação
sobre a lei orçamentária [aspecots que serão analisados em aula específica].
Recursos públicos só podem ter esta destinação.
Surgem aqui, hipóteses muito prováveis de conflitos entre
necessidades públicas, entre direitos fundamentais ou princípios constitucionais
(direito à vida digna, dever de prestar determinado serviço em caráter
universal e a necessidade de atender outras necessidades igualmente relevantes,
do interesse de toda a coletividade, por exemplo, sendo estes, conflitos
bastante comuns quando se trabalha com a prestação de serviços públicos de
saúde, e em menor medida, de educação ou outras necessidades existenciais, como
o atendimento básico a crianças, creches, etc...).
Diante do princípio da separação das funções do poder, é o
próprio Estado, e de forma mais específica, o Poder Executivo, quem define as
prioridades. Mas já não definem de forma unilateral? Por quê? Porque há um
instrumento, o orçamento, que programa e ordena todo o conjunto de despesas que
será realizada em um período de um ano pelo Estado, destinado a atender esse
conjunto de necessidades, e no qual, em tese, deve haver a possibilidade de
intervenção de interesses e necessidades da coletividade.
As audiências convocadas pela Assembléia Legislativa teriam
que cumprir, em tese, esse objetivo, assim como o próprio Executivo pode fazer
o uso de semelhante instrumento;
Um segundo fundamento para limitar essa pretensa
unilateralidade das escolhas tem sua fonte no princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana.
Exemplo concreto: construção de
creches, hospitais, atendimento de determinadas doenças pelas estruturas
públicas de saúde, presídios, sistemas de esgotamento sanitário, pavimentação
de ruas em benefício da saúde dos moradores de determinado bairro. Sempre que
um mínimo não for garantido, e essa deficiência for constatada pela função
judicial, estaremos diante de uma exceção para aquele poder do Executivo, para
definir as prioridades.
Todos os tipos de necessidades estão contemplados? Ou
ainda, todos os tipos de necessidades devem ser atingidos? A resposta teria de
ser positiva apenas se fosse considerado como objeto dos deveres estatais,
concretizar os níveis essenciais de prestações dos direitos fundamentais como
os que forem enumerados anteriormente.
6. Indicações
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