AULA 01/2014
Tema:
O Estado de Direito, direitos fundamentais e os custos dos direitos.
Problemas
propostos:
a)
Qual é a tarefa do Estado nas sociedades contemporâneas?
b)
Como é possível que assegure o bem-estar neste modelo de sociedade?
c)
O que significa dignidade de vida?
Situando
o problema: como já foi dito, por
ocasião da apresentação de nossa disciplina, foi realizada uma
opção de abordagem para o nosso programa. Essa opção exige, antes
de acessarmos ao conteúdo proposto em um programa básico de Direito
financeiro, que todos compreendam e reflitam sobre a importância e a
influência do exercício da atividade financeira do Estado no
dia-a-dia de cada um, considerando que se trata aqui de uma atividade
que, apesar de pública, requer a participação da coletividade e a
nossa participação na maior parte das decisões, para assegurar que
elas possam resultar em conseqüências úteis em nossa vida. Estamos
e estaremos tratando, em grande parte de nossas aulas, de três
valores de proeminência na ordem jurídica das sociedades
contemporâneas: igualdade, dignidade e qualidade de vida.
O
conjunto de problemas exposto para nossa análise nesta aula é: faz
parte do projeto existencial de cada um, ou ainda, este projeto tem
seu termo final na simples garantia de acesso a alimentos, de
sobrevivência física, ou à segurança alimentar? É isto que se
deve entender por qualidade de vida e vida digna em uma sociedade
contemporânea? Este é o objetivo e a tarefa atribuída ao Estado,
que deve ser concretizada através do exercício de atividade
financeira, em uma sociedade contemporânea?
1.
A ordem jurídica de uma sociedade de riscos e de escassez de
recursos
Uma
primeira abordagem de aproximação sobre a compreensão de como se
organiza a atividade financeira do Estado não pode desconsiderar a
necessidade de uma exposição sobre a progressiva acumulação de
tarefas atribuídas às funções estatais, sobre como estas tarefas
se relacionam com os objetivos expostos por cada modelo de ordem
jurídica, [enfatizando-se aqui a noção de ordem jurídica, que
será contraposta àquela decorrente de uma realidade pós-revolução
francesa, e que caracteriza uma abordagem moderna sobre o fenômeno
jurídico] e, sobretudo, de organização de modelos de Estado e da
própria elaboração do significado do fenômeno jurídico, do
sentido de lei, e de Direito, situados no contexto de cada uma dessas
realidades.
Para
tanto, partindo-se de uma referência que geralmente situa as
realidades históricas [ocidentais] de um Estado policial ou fiscal,
como representações e manifestações de um Estado medieval, é
possível descrevê-la, conforme explica Paolo Grossi (2004), como
uma realidade na qual o fenômeno jurídico, identificado em uma
referência à lex, já consistia em uma idéia presente
em Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica. Nesta, poder-se-ia
identificar uma elaboração particular para a compreensão do que
fosse uma ordem jurídica. A ordem jurídica de um Estado medieval
expressava-se como uma manifestação de integridade, enfatizando o
fenômeno jurídico e o Direito como ordenamento, e uma realidade [ou
dimensão] social do poder, a qual expunha:
a)
um pluralismo jurídico;
b)
uma dimensão social do Direito;
c)
o conceito de justiça e de razoabilidade como conteúdos essenciais
do fenômeno jurídico, expondo, portanto, uma dimensão substantiva
para o mesmo.
Em
uma ordem jurídica na qual o Direito se expunha como uma
manifestação de integridade, seria possível admitir como razoável,
portanto, que o fenômeno jurídico pudesse se expressar,
fundamentalmente, em uma relação de identidade, ou ainda, como o
resultado necessário, e como a conseqüência de uma determinada
realidade social, histórica e complexa, sendo possível identificar
que:
a)
privilegiava uma dimensão objetiva e não subjetiva do fenômeno da
juridicidade, onde o sujeito responsável pela produção da
norma é menos importante do que o conteúdo da norma;
b)
enfatizava uma dimensão ôntica do Direito (conhecimento x crença)
e não volitiva (ato de vontade imperativo), e que;
c)
procurava preservar, em conjunto com uma idéia de direito como
ordenamento, a complexidade da realidade das coisas, de forma a
colocar ordem e harmonizar a complexidade, não restringindo ou
simplificando essa realidade. Tal pretensão de simplificação e
aumento da possibilidade de redução da complexidade é, ao
contrário, própria da influência iluminista e que se fez
reproduzir, de outra forma, na elaboração da visão potestativa do
Direito, que se funda na noção da lei como ato de autoridade, que
representa a manifestação de poder político (unipessoal e
soberano) ou vinculado a uma autoridade circunstancial (parlamentos).
Por
seu turno, a concepção moderna da lei, fiel à concepção proposta
para a referência loi, caracteriza-se como o oposto do
arquétipo medieval e se encontra expressa através de uma dimensão
potestativa do direito. A positividade do Direito é reduzida e
simplificada à concepção normativa e formal de lei, baseada na
apropriação estatal do fenômeno jurídico, na rejeição à
complexidade, à historicidade e à socialidade do fenômeno
jurídico, e sobretudo, no privilégio de uma dimensão volitiva,
potestativa e subjetiva da lei, onde esta se exprime como ato de
vontade imperativa, fonte exclusiva da jurisdicidade, que se
consolidaria através das Codificações, cujos principais atributos
reproduziriam a pretensão de unidade (fictícia), completude e
justamente a exclusividade.
Esses
atributos produzem, como consequência relevante para a cultura
jurídica, a simplificação cultural do fenômeno jurídico e da
própria positividade. Traços que evidenciam tais conseqüências
podem ser reconhecidos pontualmente no desenvolvimento da teoria das
fontes do direito, que ainda prioriza a lei (sob uma postura
normológica) como fonte de jurisdicidade e a atividade de
interpretação/aplicação da lei como momento distinto e estranho à
positividade. Esta se adstringe ao momento da produção da norma e a
interpretação, nesse sentido, seria tão somente a atividade de se
reconduzir àquele momento de revelação da vontade imperativa. A
concepção moderna de lei privilegia essa simplificação, porque
compõe uma unidade e uma realidade artificiais, expressas em regras
e que deveriam corresponder a essa realidade, reificando-a no tempo e
estatificando-a àquele exato momento genético.
Tal
como ponderado por Montaigne, a lei bastaria por si só para
justificar-se, independente de um conteúdo pré-determinado. Em
detrimento de uma postura ôntica do direito (própria da lex de
tradição medieval), a concepção moderna de lei refuta a
dependência dos processos de justificação em relação a conteúdos
substantivos. A justiça como lei do período medieval é substituída
pela concepção que identifica a lei à justiça, e a norma jurídica
estatal como produto próprio de um processo legislativo. Todos esses
fatores permitem delinear um quadro da cultura jurídica
contemporânea, descrito por Grossi (2004) como um processo de
mitificação do Direito, onde esse passa a se manifestar como um
mito.
A
atividade de conhecimento sobre a complexidade da realidade é
preterida em favor da crença em pretensas verdades axiomáticas
encerradas em um texto, que representa um momento da produção e que
se superpõe à autêntica dimensão sapiencial do direito. Falar-se
em ordem e em uma ordem jurídica, impõe a remissão à necessidade
de harmonizar a realidade e compor a complexidade.
Até
o momento, tratou-se de apresentar realidades de duas ordens
jurídicas que expressariam, em melhores condições, um modelo de
Estado vinculado a um conjunto bastante específico de necessidades e
demandas, e de tarefas públicas. Estas tarefas deveriam ser
executadas por iniciativa do próprio Estado, destacando-se as ações
de segurança interna e externa, e de proteção à propriedade
privada.
Semelhante
representação exporia, adequadamente, [parece-nos] um modelo de
Estado fiscal e de Estado policial. A questão suscitada nesta
ocasião é: os desafios postos pelas sociedades contemporâneas
poderiam ser enfrentados segundo um modelo de ordem jurídica
vinculado à noção de loi, ou ainda, de um modelo de
Estado fiscal ou liberal? Estas representações são suficientes
para nos apresentar respostas adequadas no plano da proteção de
direitos, de benefícios à coletividade, de assegurar qualidade de
vida? Se não são, qual é a razão de não o serem?
Uma
possível resposta decorre da admissão de que vivemos e convivemos,
neste momento, com os efeitos de processos tecnológicos, produtivos
e decisórios, social e ambientalmente nocivos, os quais constituem a
manifestação de uma sociedade que se faz apresentar na forma de uma
sociedade de riscos globais. Tal circunstância expõe à organização
do Estado, funções e tarefas não apenas adicionais, senão
diferenciadas.
O
contexto social, político e ambiental das sociedades contemporâneas
impõe ao Estado de direito tarefas vinculadas à proteção diante
de riscos, que não são efeitos de desastres, catástrofes da
natureza, senão do resultado de comportamentos humanos, de modelos
de exploração econômica de tais recursos.
Note-se
que se nem todos estão expostos, no plano nacional, aos mesmos
riscos ou à mesma medida de riscos; no plano externo, se esta
afirmação é verdadeira, deve ser tratada com alguns cuidados.
Os
relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas) apontaram que as fontes de emissões de Gases Efeito
Estufa (GEE) decorrem não só de atividade industrial, mas também
de atividades agropecuárias e de outras formas de degradação da
qualidade ambiental, estas situadas em países em desenvolvimento
(Norte).
Nesse
cenário, perde o sentido expressar uma noção de iniquidade
ambiental que possa ser expressa nesses estreitos termos. Se
realmente não é possível conceber que todos os governos estão
expostos aos mesmos riscos e a mesma medida de riscos, de outro modo,
esta não pode ser simplificada desta forma.
Há,
de outro modo, divergências sobre se os próprios
prognósticos do IPCC seriam credíveis. Aponta-se para um
prognóstico de elevação de temperaturas, da aceleração de
processos de desertificação em florestas, de savanas na Amazônia,
de elevação do nível dos mares, e de modificação do regime
hídrico e pluviométrico em regiões inóspitas e áridas,
envolvendo perdas e benefícios em uma escala global.
Um
cenário de dúvidas e controvérsias também
caracteriza a ciência das mudanças climáticas e influencia a
própria definição da realidade dos riscos, contrapondo, de um lado
[e estamos tratando aqui das discussões realizadas no plano do
IPCC], os cientistas do painel de mudanças climáticas do IPCC, e de
outro, cientistas tidos por céticos, como Bjorn Lomborg.
Aqui,
fica claro que conflitos existem no plano científico. A controvérsia
se estabelece entre cientistas, e se reproduz no plano da regulação,
no plano de como a proteção é proposta por um
Estado, através de atos normativos, de atividade administrativa e,
por fim, da atuação judicial.
É
aqui que se insere a configuração contemporânea de um modelo
diferenciado de organização estatal, o de um Estado de direito, que
além de social, também é ambiental.
Esse
Estado tem como tarefa a de assegurar proteção diante dos efeitos
de decisões civilizatórias, suscitando limitações e restrições
sobre as liberdades econômicas, e para a capacidade de disposição
e de definir os caminhos de desenvolvimento da personalidade humana,
que passam não só pela exploração arbitrária e irracional de
recursos naturais, segundo suas próprias necessidades e utilidades,
senão pela necessidade de se assegurar proteção da capacidade de
regeneração e de manutenção daqueles, e da qualidade de vida que
decorra dessa proteção. Esse é o objetivo fixado para o Estado na
condição de tarefa, que deve ser prestada perante cada um de nós,
na coletividade. Tem-se aqui uma equação: tarefas e prestações,
sendo esta a equação cuja complexidade está exposta neste momento
à atividade financeira do Estado, e que se mostra importante para a
análise no programa desta disciplina.
2.
O Estado ambiental ou socioambiental de Direito
Para
que possamos nos situar nesta aula, é conveniente ressaltar que o
início de nosso programa depende de que, primeiro, seja enfrentada a
seguinte questão: se estamos tratando da atividade financeira do
Estado, a que modelo de Estado fazemos referência? Em que modelo de
Estado se insere o conjunto das ações, dos processos, da escolhas,
que veremos, estão associadas e decorrem diretamente da atividade
financeira desse modelo contemporâneo de Estado?
Apenas
a título de exemplo, temos, nas sociedades contemporâneas, a
emergência da questão de riscos de diversas ordens, entre os quais
ganha ênfase, neste momento, os ambientais, e mais especificamente,
os riscos climáticos.
Nessa
ordem de problemas e de seu enfrentamento, como é possível
compreender os problemas ambientais para o fim de se obter proteção
de direitos fundamentais, assegurar benefícios existenciais, que é
o resultado último, conforme constataremos, das ações do Estado,
e, portanto, da atividade financeira dele?
A
compreensão de semelhante processo decorre, primeiro, de que se
possa compreender os problemas ambientais sob o plano organizatório,
e, depois, sob o plano normativo.
A
equação propõe que a compreensão dos problemas ambientais supõe
sua análise a partir da seguinte relação: plano
político-organizatório (Estado) → plano normativo (juridicidade
ambiental).
Os
problemas ambientais destas sociedades contemporâneas expõem:
·
uma crise ambiental, que propõe uma
nova qualidade de ameaças: perigos e riscos;
·
uma realidade de riscos visíveis,
invisíveis, concretos ou abstratos, ou ainda, acessíveis ou
inacessíveis ao conhecimento científico disponível. Os últimos
(riscos inacessíveis ao conhecimento científico) reproduzem com
maior fidelidade duas características essenciais dos novos riscos: a
imprevisibilidade e a incontrolabilidade. Esses riscos também
propõem ameaças resultantes da acumulação de fontes e causas de
poluição e de degradação, consubstanciando o que o professor
Canotilho classifica como problemas ambientais de segunda geração
(problemas de efeitos acumulados), que mesmo que possam ser
previstos, não podem ser controlados ou não são objeto de controle
eficiente pelas instituições.
Esse
quadro encontra-se associado ao fenômeno de uma irresponsabilidade
organizada, (Beck) pelo qual, mesmo que possam ser previstas as
fontes e as causas de degradação e poluição, omissões
voluntárias das instituições no sentido de tolerá-las ou de não
submetê-las ao controle adequado, oportunizam a proliferação das
ameaças, tal como em relação àquelas que sequer podem ser
confirmadas pela ciência.
Um
exemplo desse cenário pode ser traçado a partir da poluição
acumulada no continente asiático (riscos concretos e previsíveis,
mas incontroláveis), e a partir do quadro de mudanças climáticas
globais (riscos abstratos que apenas recentemente puderam ter uma
relação de causalidade com comportamentos humanos demonstrada
cientificamente, e que não podem ser controladas adequadamente).
Esse
mesmo cenário propõe, no plano de relações econômicas
globalizadas, interação entre os processos de produção e efeitos
desiguais na distribuição dos ônus ambientais.
Exemplo:
financiamento de complexos industriais em países em desenvolvimento
por nações européias ou pelos EUA concentram a circulação dos
benefícios financeiros nas nações de origem, e os ônus ambientais
às nações onde estão instalados os complexos industriais. Esse
cenário descreve efeitos que tendem a se acumular com outras fontes,
e que, em alguma medida, são distribuídos para outras nações que
não possuem nenhuma relação, seja com o financiador, seja com o
espaço que autorizou a instalação das fábricas e atividades
poluentes.
Conclusão:
uma sociedade de riscos e, mais recentemente, uma sociedade mundial
dos riscos, não é uma sociedade
democrática, porque não oportuniza igual acesso à qualidade dos
recursos naturais.
2.1.
Síntese sobre os modelos de Estado e suas funções
2.1.1
Aspectos introdutórios: os modelos de Estado e a redefinição das
tarefas públicas.
a)
Estado fiscal: segurança pública, segurança contra ameaças
externas;
b)
Estado liberal: segurança pública, segurança contra ameaças
externas, propriedade privada e vida privada;
c)
Estado social: prestações sociais;
d)
Estado social e democrático de direito: agregação de funções de
planejamento, prestações sociais, exploração de atividades
econômicas, e vinculação a princípios materiais, relacionados à
dignidade da vida, e à concretização de um mínimo existencial,
que agora também é ambiental (Estado socioambiental de direito).
3.
Estado ambiental, escolhas públicas e privadas e direitos
fundamentais.
Que
tipo de Estado pode garantir, ao mesmo tempo, segurança cívica
(segurança civil: proteção à integridade física, patrimônio) e
segurança coletiva (acesso a bens, valores e serviços suficientes
para uma vida digna)?
Um
Estado de Direito, em sua perspectiva liberal clássica, que protege
bens, pessoas [vida privada e direitos da personalidade] e que
objetiva a segurança interna e externa pode proporcionar essa
segurança, nesse cenário de transformações?
Como
podemos relacionar a sociedade de riscos como um contexto de
problemas relevante para o objeto de estudo de nosso programa de
disciplina? Os riscos pessoais, os efeitos de desastres naturais,
catástrofes, a proteção social, a segurança pessoal, ambiental,
patrimonial, todas estas variáveis propõem custos e, portanto,
despesas, que remetem ao nosso objeto de análise, o direito
financeiro.
Percebam,
a partir deste conjunto: a relação estabelecida entre as estruturas
de organização estatal, suas tarefas e objetivos; e o conteúdo de
nosso programa, que envolve, [ressalte-se], fundamentalmente, o
problema de como o Estado, pode atingir a realização dessas tarefas
e objetivos. De que instrumentos dispõe, que tipo de problemas
envolve a realização dessas tarefas. Temos aqui, escolhas que serão
realizadas.
Por
que realizar algumas escolhas, e não outras? Por que outras escolhas
são proibidas? Por que algumas escolhas são impositivas?
Outros
aspectos também são importantes e serão enfatizados. O principal
deles está na relação, que também influencia o estudo de nosso
programa, entre escolhas privadas e os custos das ações públicas
sobre a realização de tarefas pelo Estado.
A
minha escolha entre não utilizar, utilizar racionalmente um veículo
automotor, ou utilizar veículos com frequência, além de veículos
que consumam combustíveis fósseis e que não exponham índices de
economia e consumo aceitáveis, implica em incremento e em contribuir
com o aumento das emissões, elevação nos custos paras as ações
de descontaminação, custos da atividade produtiva para sua
mitigação, além de ações de saúde, suportadas pelo Estado, e,
em última análise, por todos os membros da coletividade na forma de
receitas derivadas, decorrentes do exercício da atividade
tributária, pela qual os particulares são destinatários de um
dever de colaboração e de solidariedade para com o poder público.
Notem
que não temos aqui um ato voluntário de beneficência, senão de um
dever a que se encontram sujeitos os particulares e que tem seu
fundamento em um princípio de solidariedade, princípio este que
constitui a representação dos modelos de Estado social e
pós-industriais. Estes deveres têm espaço cada vez mais expressivo
na experiência constitucional ocidental, sendo possível
identificá-los, na ordem brasileira, naqueles deveres ambientais,
familiares, e vinculados à proteção social (trabalho, saúde e
previdência). Insere-se aqui, também, um dever de colaboração
para o fim de justificar moralmente a ação estatal em matéria
tributária. Este tema será resgatado por ocasião da análise das
receitas tributárias, objeto de aula específica.
Um
exemplo muito marcante deste cenário pode ser associado ao quadro de
catástrofes e de desastres civis recentemente noticiados em todos os
veículos da mídia nacional. Deslizamentos de solo no Rio de
Janeiro, enchentes em São Paulo e no Rio Grande do Sul, e mortes
decorrentes desses eventos. Decorre da correta destinação e da ação
oportuna dos governos [e isto exige a obtenção e a aplicação de
recursos financeiros que têm geralmente a origem em patrimônio
privado, sendo este o caso dos tributos em geral], a garantia de que
cada um de nós possa dormir com tranqüilidade em nossas
residências, livre da ameaça de deslizamentos, transitar com
segurança em vias públicas, de doenças endêmicas ou epidêmicas
[garantias de mera sobrevivência física, vinculadas às ações de
segurança pública, de um sistema público de saúde, e de serviços
de saneamento ambiental] ou de desenvolver plenamente nossos
potenciais e nossa personalidade, obtendo melhores níveis de vida,
com o acesso a serviços públicos de qualidade que proporcionem
progressivo avanço em nossa existência física [este é o caso da
educação, bem como da assistência, e do trabalho].
Recuperando
o que já foi antecipado em nossa apresentação, três questões
devem ser examinadas e merecem a nossa reflexão para que possamos
compreender o complexo conjunto de relações e consequências da
organização da atividade financeira do Estado, e de nosso programa.
Primeira
questão: quem deve assegurar a
proteção e a obtenção de benefícios existenciais nas sociedades
contemporâneas? Se estamos tratando do Estado, uma segunda questão
se impõe: todas as demandas existenciais devem ser asseguradas por
um modelo de Estado, e estas demandas são permanentes e invariáveis?
São comuns a todas as realidades? Terceira:
se a resposta for negativa, a que se encontra obrigado o Estado?
Fazendo
o uso de alguns vinculados à proteção do meio ambiente, que é a
minha área de investigação, temos que na Constituição
brasileira, a tarefa de proteção do meio ambiente não está
atribuída com exclusividade ao Estado, senão a um modelo de
co-responsabilização, no qual a execução da imposição é
compartilhada entre as funções públicas e a sociedade, que
colaboram (funções públicas entre si, e estas com os particulares)
em nome do objetivo comum de assegurar a qualidade dos recursos
naturais.
Por
que isto e qual a relevância desta abordagem em Direito financeiro?
Se o Estado também tem tarefas, deve ser ressaltado que sua execução
implica a geração de despesas, de gastos públicos, cuja fonte é
em grande medida, oriunda do patrimônio do particular. Notem,
portanto, que o gasto público sempre envolve uma atividade de
colaboração entre Estado e sociedade. O Estado é o gestor do
patrimônio que tem sua fonte no exercício das liberdades econômicas
dos particulares.
Esta
abordagem terá sua relevância demonstrada porque permite, a um só
tempo, aproximar o seu conteúdo de experiências práticas e da
realidade, e permite sua comunicação e interação com outros
domínios de crescente influência no direito contemporâneo: as
teorias de justificação dos direitos fundamentais e o direito
ambiental.
É
o que nos remete situações como desabamentos, o aumento da poluição
atmosférica, a contaminação dos lençóis freáticos urbanos e dos
solos, a elevação das temperaturas médias nos espaços urbanos,
entre outras. Todas elas suscitam reflexão, que, em última análise,
vincula-se à construção de referências sobre padrões de vida
digna, sobre a capacidade ou não de assegurar o pleno
desenvolvimento da personalidade humana nesses espaços, e sobre a
capacidade de assegurar proteção à autodeterminação da vontade.
Remete-se,
portanto, à noção de qualidade de vida, e de quanta
qualidade de vida o Estado se obriga oferecer, assegurar ou proteger.
O
aumento nos níveis de contaminação do ar, solo, recursos hídricos
implica, necessariamente, perda de qualidade de vida em diferentes
níveis, sendo a manifestação mais evidente o aumento no número de
atendimentos na rede pública de saúde (que representa a elevação
da despesa pública). Temos, aqui, um exemplo que bem ilustra o que
se deve entender por responsabilidade, eficiência e moralidade na
realização das escolhas sobre como, onde e, principalmente, quando
empregar os recursos públicos.
Uma
decisão pública sobre os gastos que seja inoportuna pode
representar sua elevação em momento posterior, elevação que
poderia ter representado a aplicação em outras necessidades
igualmente relevantes. Veja-se, por exemplo, o caso da omissão ou da
inércia na realização de ações de combate ao assoreamento das
margens de cursos hídricos urbanos, ou nas políticas de habitação
urbana para o fim de desocupação de áreas de preservação
permanente. Desta omissão pode resultar o desabamento, e efeitos
intoleráveis de enchentes que exigirão ações públicas de
alocação, assistência e reparação de danos, todas elas
suportadas de forma direta por toda a sociedade.
Pergunta-se:
é razoável, aceitável ou, ainda, é legal ou constitucional
admitir esta perspectiva de justiça distributiva? A coletividade
deve ser responsabilizada (no sentido de lhe ser exigida responder
financeriamente pelo custo das ações do gestor público) tão
somente pelo fato de ter conferido poderes de representação
política a um chefe do Poder Executivo? Esta manifestação da
democracia representativa é suficiente para o fim de imunizar o
representante de prestar contas de suas decisões? Ou de exercer seus
poderes nos limites da representação que lhe foi conferida?
Sobre
esse conjunto de problemas deve ser ressaltado que o gestor público,
conforme será exposto ao longo do programa da disciplina, ao menos,
possui a capacidade de tomar decisões nos limites da representação
que lhe foi conferida, representação que tem por objetivo a
realização dos objetivos da república.
Excessos
não podem ser admitidos e, neste plano, não podem ser suportados
pela coletividade. Aqui, está a função dos instrumentos de
controle na execução orçamentária e dos tribunais de contas. A
representação política não lhe confere a capacidade soberana de
realizar escolhas e responsabilizar financeriamente a sociedade
independente das finalidades ou objetivos que deva atingir. Nem toda
escolha é legítima para o fim de justificar a responsabilização
da sociedade. Determinadas escolhas podem ser revistas, corrigidas,
ou invalidadas no contexto de um modelo de controle recíproco entre
as funções políticas.
Aqui,
também, será possível perceber que o desenvolvimento teórico,
filosófico e moral não constitui retórica, senão o fundamento de
escolhas que são realizadas no âmbito de comunidades e de consensos
sobre como deve ser guiada e desenvolvida uma vida decente em uma
determinada organização social e sob um determinado modelo de
organização política e econômica. Estas escolhas são realizadas
no âmbito de Constituições e são, fundamentalmente, escolhas
morais.
Outro exemplo,
que também representa uma realidade cada vez mais próxima de nosso
cotidiano, pode ser vinculado à análise do fenômeno das mudanças
climáticas globais. Elas não decorrem necessariamente de
comportamentos ou riscos de grandes proporções ou, ainda, de
atividades de elevada capacidade de intervenção sobre os recursos
naturais e os respectivos espaços. Um simples hábito como o de
lavar diariamente as roupas, fazendo o uso de detergentes, pode
contribuir de forma mais ou menos severa para a contaminação dos
recursos hídricos e mortandade da fauna aquática com a alteração
dos processos físicos e biológicos daquele ecossistema. Isto
implica necessariamente em comprometimento e a necessidade de
modificação das escolhas públicas. Se estas poderiam,
inicialmente, ser realizadas a partir de um amplo espectro de opções,
sujeitas a melhor conformação para o atendimento de um determinado
interesse público, agora têm de se limitar ao atendimento daquela
necessidade que surge como prioritária, porque envolve a tarefa de
redução e mitigação dos riscos à saúde humana.
Decisões
e comportamentos privados podem vincular em maior ou menor medida as
escolhas estatais e o modo de atuação de cada uma de suas funções.
Na
hipótese contrária, em que não sejam destinados recursos para
despoluição e a redução dos riscos ao meio ambiente e à saúde
humana, terão de ser realizados, necessariamente, para o atendimento
do serviço público de saúde, que reproduzirá, provavelmente,
cenário que exigirá o aumento na demanda por prestações públicas.
Em
todo caso, escolhas irresponsáveis realizadas sob a perspectiva
privada não representam, em nenhuma hipótese, um bom negócio para
a coletividade, que se vê afetada de forma indireta pelos resultados
de atos que não lhes podem ser atribuídos. Estes efeitos decorrem
no aumento nos gastos públicos e na afetação excessiva de seu
patrimônio, visando atender a essas necessidades e prioridades
geradas por iniciativas de poucos. Este cenário reproduz uma
realidade de injustiça e de iniquidade ambiental cada vez mais comum
nas sociedades contemporâneas, nas quais os riscos representam
efeitos negativos decorrentes da iniciativa de poucos, sobre a esfera
existencial de muitos, e que se estende em escalas distantes no
tempo.
Dessa
exposição, resulta clara a necessidade de se reforçar a noção
deresponsabilidade, que compreende um sentido de cooperação
coletiva e de solidariedade no domínio do direito financeiro,
relacionando os comportamentos públicos e privados, a ação estatal
e o envolvimento de toda a coletividade. Para ilustrar este aspecto,
notem, por exemplo, que grande parte das enchentes urbanas decorre do
acúmulo de resíduos, e estes resíduos são produzidos por cada um
de nós, sendo, portanto, o resultado e a conseqüência de
comportamentos que não são estatais, senão privados, particulares.
Ocorre que destes comportamentos, decorre maior ou menor
comprometimento da ação estatal no sentido de assegurar proteção
civil perante os efeitos das enchentes, e do mesmo modo, com as ações
destinadas a despoluir os cursos hídricos, manter a qualidade das
águas, tratar os resíduos produzidos pela sociedade e reduzir os
níveis de contaminação.
Por
outro lado, o mesmo cenário também pode ter origem na omissão
estatal, ao deixar de fiscalizar ou de assegurar a correta ordenação
e o uso dos espaços e do solo urbano, ao deixar de executar obras de
saneamento ambiental, desocupação de áreas de risco, recuperação
de áreas de preservação permanente para o fim de evitar os riscos
civis em períodos de chuvas intensas.
Enchentes
contribuem para a contaminação de lençóis freáticos utilizados
para o abastecimento e o consumo humano. A ausência de investimentos
no tratamento e no saneamento ambiental resultará na provável
elevação das despesas públicas com os serviços públicos de
saúde, diante da possibilidade da elevação nos números de
atendimentos relacionados a um conjunto de doenças
infecto-contagiosas.
O
mesmo cenário também pode resultar da ausência nos investimentos
relacionados ao controle da poluição atmosférica ou nas ações
para o fim da diminuição de emissões no setor de transportes
urbanos. A ausência de ações públicas de educação ambiental ou
mesmo de incentivos, investimentos em pesquisa sobre alternativas
tecnológicas para combustíveis fósseis pode resultar em cenário
semelhante: a elevação nas despesas relacionadas ao sistema público
de saúde, decorrente do aumento no número de casos de doenças
respiratórias, ou cânceres, cuja prova científica que relacione
tais efeitos à referida causa há muito tempo deixou de estar
reservada ao âmbito das conjecturas, razão pela qual, mesmo sob uma
lógica de custos-benefícios, seria perfeitamente possível
justificar as ações públicas.
Neste
ponto, questão de grande relevância ainda pode ser
suscitada, mas que não será objeto de aprofundamento em nosso
programa: o que justifica a ação pública para a proteção de
direitos fundamentais? É demandada a evidência científica
conclusiva, prova conclusiva sobre uma relação de causalidade (vide
os investimentos em ações ambientais para a redução de
determinados riscos) e a demonstração de que os custos da ação
serão equivalentes aos benefícios resultantes de tais
investimentos? Ou diante de determinados riscos, é suficiente a
exposição de evidências, ainda que não conclusivas, mesmo que os
benefícios esperados não superem os custos das medidas que terão
que ser adotadas?
Em
outras palavras: diante dos riscos
representados pela exposição continuada ao amianto, ou mesmo,
diante dos riscos representados pelo aumento das emissões do setor
de transporte, o Estado poderia justificar, ou estaria autorizado a
propor uma determinada ação pública, mesmo que não fosse possível
demonstrar cientificamente e de forma conclusiva que o aumento do
número de casos de doenças respiratórias e de cânceres pudesse
ter origem na poluição atmosférica, ou que os casos de asbestose
em um determinado município, Estado ou localidade, decorrem da
exposição continuada ao amianto?
Sob
a perspectiva exposta até o momento, é possível constatar que,
quando examinamos o conteúdo vinculado ao direito financeiro, não
podemos nos restringir exclusivamente à análise das leis
orçamentárias e dos instrumentos destinados a organizar e destinar
recursos públicos.
A
correta compreensão da disciplina e de seu conteúdo passa,
primeiramente, pela compreensão de que estamos lidando aqui, com um
conjunto de relações que não envolvem apenas o Estado, conforme
costumeiramente costuma ser exposto nas obras de referência.
Temos
por objeto um conjunto de relações que envolve necessariamente a
análise da dinâmica das relações sociais, de um projeto
democrático exposto por uma formação estatal definida por uma
Constituição. Um Estado social e democrático de direito, que
aponta que seus objetivos não podem ser atingidos senão com a
cooperação entre a sociedade e as funções públicas.
Não
podemos compreender a disciplina, seus temas e seus instrumentos de
forma dissociada desta imagem e deste projeto de ordem social
proposto pela Constituição brasileira.
As
escolhas privadas e os comportamentos sociais produzem conseqüências
cada vez mais relevantes no plano coletivo [os efeitos que atingirão
todos os membros da coletividade] e no plano estatal. Estas
escolhas modificam a forma e a própria definição de como o Estado
se comportará perante os problemas e contextos sociais, políticos e
econômicos, visando assegurar a realização de suas tarefas.
Através
de suas funções, o Estado pode estimular, incentivar ou
desestimular comportamentos, seja por
ações de comando e controle (proibições e restrições) ou sob
políticas públicas que induzam escolhas voluntárias pelos
particulares.
A
partir do momento em que um comportamento deixa de ser uma mera
escolha individual e se torna influente sobre o caminho que toda a
coletividade pretende propor para a sua própria existência, teremos
conseqüências relevantes para as escolhas que serão realizadas
pelo Estado.
Um
indivíduo que decida consumir alimentos orgânicos ou que faça a
separação dos resíduos pouco contribuirá para uma alteração
substantiva que seja positiva para a ação pública. Entretanto, no
momento em que tais escolhas se integrarem ao ponto de um consenso
coletivo expressivo, será visível o efeito no plano das escolhas
estatais. Portanto, as conseqüências de comportamentos determinados
e de atos de poucos podem se estender de forma coletiva, sendo
suportados por toda a coletividade na forma de custos, de deveres de
conteúdo econômico.
Podemos
citar mais outro exemplo bastante próximo de nosso
cotidiano, que pode ser utilizado para a exposição de formas
diferenciadas de se visualizar a preponderância de uma discussão
vinculada à organização financeira do Estado. Quando o Estado
adquire bens que não provêm de atividades ambientalmente
certificadas, ou que reflitam padrões sustentáveis de uso dos
recursos naturais, o principal resultado para a Administração
Pública é a apresentação de uma proposta de preços
economicamente mais vantajosa, que tende a influenciar uma escolha
por esta em detrimento de outras que possam exprimir preços
superiores.
Ocorre
que essa proposta reflete apenas uma conveniência imediata para a
Administração Pública, uma vez que o preço é o resultado final
da consideração de custos, que por sua vez são determinados a
partir da consideração de um conjunto complexo de variáveis, o
qual pode compreender elementos sociais e ambientais. Sob este
contexto, um preço pode ser economicamente mais vantajoso para a
Administração, mas pode lhe produzir consequências indiretas
bastante severas, conseqüências sob a dimensão financeira e que,
em última análise, produzem efeitos na forma de ônus ou
responsabilidades suportadas por toda a coletividade.
Se
cabe ao Estado zelar para que as aquisições de bens e serviços
sejam realizadas do modo mais econômico quanto seja possível,
visando promover o uso racional dos recursos públicos que são
limitados, também deve zelar [porque lhe foi atribuído o dever
geral de proteção dos direitos fundamentais, decorrendo destes a
função de proteção e a tarefa de proteção mencionados] pela
proteção da sociedade perante riscos a sua qualidade de vida, ao
seu bem-estar, a sua saúde, e pela proteção do meio ambiente,
compreendido em suas realidades natural, cultural e social.
Nesse
sentido, uma escolha que pode representar a expressão imediata de
economicidade, pode resultar, de forma indireta, na elevação de
custos para a proteção de tais direitos fundamentais,
posteriormente.
Em
outras palavras, fazendo o uso de um exemplo mais
concreto, tem-se que a aquisição de madeira oriunda de desmatamento
ilegal, de espécimes imunes ao corte, expostos à ameaça real de
extinção, somente representa um preço inferior, e portanto, uma
vantagem econômica ao Estado, porque não expressa TODOS OS CUSTOS
que deveriam ter sido considerados para a exposição de tal preço.
Não
foram considerados nessa equação, eventuais custos sociais e,
principalmente, os custos ambientais do produto oferecido. Uma vez
desconsideradas estas variáveis para a composição do preço, a
vantagem econômica imediata se reverte, posteriormente, em
desvantagens na forma de externalidades compartilhadas de forma
coletiva, entre todos os membros da sociedade.
O
comportamento público e as escolhas realizadas pelo poder público
podem envolver e refletir em perda de qualidade de vida para toda a
sociedade.
Entretanto,
a ação do poder público que resulte de suas próprias escolhas não
são as únicas capazes de influenciar, de forma positiva ou
negativa, a transformação da realidade.
Escolhas
estatais e os comportamentos particulares podem produzir
conseqüências sob o plano existencial. Melhoria na qualidade de
vida ou prejuízos para o bem-estar podem resultar dessas escolhas, e
essas escolhas podem representar consequências úteis, deficientes
ou insuficientes sob o plano do exercício da atividade financeira,
que é uma atividade pública.
Bem-estar
é uma referência variável e só pode ser definida contextualmente,
historicamente e culturalmente. O desafio é determinar qual é o
padrão de bem-estar a que o Estado se encontra vinculado, e qual é
o grau de intervenção que terá de ser justificado para o fim de
acesso aos recursos necessários, sob as liberdades econômicas.
Aqui, cabe utilizar o exemplo do lixão no município de Cuiabá,
para especificar a insuficiência de uma leitura de sucessão
geracional para os direitos, e para enfatizar a interdependência
entre todos, a fim de justificar a ação estatal. Utilizar o exemplo
do bem-estar sob o plano da igualdade de acesso aos benefícios e
vantagens existenciais, tendo como contexto o do lixão.
O
Estado deve assegurar a igualdade de acesso aos benefícios e
vantagens existenciais. Sendo assim, o bem-estar, situado na condição
de efeito e resultado da ação pública, deve ser um objetivo
universal ao alcance de todos.
Tomando-se
como exemplo o contexto de um lixão, tem-se que o
Estado deve ser capaz de proporcionar a todos segurança sanitária,
ambiental e à saúde humana por meio de tratamento adequado dos
resíduos. Se o poder público não proporciona o tratamento adequado
de resíduos e os acondiciona em um lixão, os benefícios serão
auferidos por poucos (que possuem condições de escolher moradias
bem localizadas e que nunca serão atingidas por uma decisão pública
co esse conteúdo) e os efeitos negativos suportados por toda a
coletividade que resida em seu entorno. Há aqui um prognóstico
negativo decorrente da falha na ação estatal. Por outro lado, se
for atribuída a correta destinação dos resíduos, por meio de um
aterro sanitário, o problema de justiça ambiental (localização da
área) ainda persiste, ainda que tenha sido mitigada a probabilidade
de ocorrência das externalidades (efeitos negativos). Entretanto, se
nenhuma medida for adotada pelo Estado visando influenciar a
transformação do comportamento dos particulares, reduzindo sua
capacidade diária de produção de resíduos, ou se estes não
transformarem seus hábitos de consumo visando atingir
voluntariamente tal finalidade, o problema nunca poderá ter uma
solução adequada. Este primeiro exemplo reforça a
relação, que procuramos enfatizar nesta primeira aula, entre os
comportamentos públicos e privados na transformação positiva ou
negativa da qualidade de vida que se pretende proporcionar para uma
universalidade.
Outro
exemplo: A aquisição de madeira, v.g,
oriunda de desmatamento ilegal e a aquisição de bens que empreguem
em seu processo produtivo o uso de trabalho escravo representam a
diluição coletiva de externalidades, de custos sociais e ambientais
que não foram oportunamente considerados, seja pelo operador
econômico, seja pelo próprio Estado, que assim procedendo,
contribui para o incremento do quadro de riscos, que deveria reduzir
e mitigar, pois lhe foi atribuído um dever de proteção dos
direitos fundamentais.
Portanto,
escolhas que podem representar vantagens econômicas em um plano
imediato podem resultar, em escalas temporais variadas, desvantagens
expressas em cenários de iniquidade ambiental, porque externalidades
produzidas de forma privada e toleradas pelo Estado que deveria
assegurar a proteção dos direitos fundamentais, são repartidas e
compartilhadas entre todos os membros da coletividade. Tem-se, aqui,
a reprodução de uma visível contradição: O Estado obtém
vantagens econômicas às custas de contribuir, de forma indireta,
para a elevação dos riscos que deveriam ser evitados pelo exercício
de suas funções.
Se
é dever estatal proceder de forma racional e proporcional perante o
interesse público que precisa ser atingido, objetivando assegurar o
melhor nível de desenvolvimento de um conjunto expressivo de
realidades vinculadas à existência humana, é também dever estatal
assegurar a proteção dos direitos fundamentais à saúde e ao meio
ambiente, reduzindo os riscos e não contribuindo para a sua
elevação. Se assim procede, contribui de forma distinta daquela
sugerida inicialmente, para a elevação dos gastos públicos e para
o desequilíbrio na realização de padrões de justiça
distributiva; contribui para o incremento dos riscos existenciais e
não para a sua mitigação e redução.
4.
Dignidade de vida, mínimo existencial e a proteção dos direitos
fundamentais.
O
Direito financeiro propõe como objeto, conforme será analisado na
próxima aula, a investigação sobre problemas que, neste momento do
desenvolvimento do Direito Público, não limitam seu interesse a
esta disciplina, além de exigir a comunicação com outros domínios
do Direito Público e Privado, visando viabilizar a compreensão de
seus instrumentos e de suas funções.
Se
considerarmos que propõe, em última análise, uma investigação
sobre como o Estado poderá viabilizar um determinado projeto de
sociedade definido por uma Constituição ou experiência jurídica,
a partir de instrumentos e dos recursos financeiros que estejam ao
seu alcance, estamos propondo aqui a conexão com objetivos que não
constituem o objeto do interesse exclusivo de uma disciplina.
Assegurar a existência digna em um espaço público de um Estado de
Direito (social, democrático e ambiental) é tarefa de Estado,
requer a colaboração social, e é um dos objetivos da república.
Viver
dignamente, desenvolver plenamente a personalidade do homem e
assegurar que cada um de nós consiga ser capaz de definir e escolher
um projeto de vida que lhe satisfaça e proporcione bem-estar são
objetivos que somente podem ser atingidos, mesmo individualmente, por
meio de um conjunto de pressupostos que dependem da ação pública.
A
ação dos particulares, buscando desenvolver e otimizar as condições
que lhes garantam felicidade, ainda que permitam proporcionar níveis
mais elevados do que os padrões que sejam considerados essenciais,
dependem de algumas pré-condições, entre as quais, a proteção de
uma ordem econômica, um sistema de justiça, um sistema de segurança
pública que lhes assegure o exercício de suas liberdades civis e
econômicas. Por outro lado, toda a universalidade deve ter acesso,
por iniciativa do Estado, ao conjunto de prestações que seja
reputado elementar para o desenvolvimento de uma referência objetiva
de dignidade.
Quanto
mais otimista e exigente é o projeto político definido pela
Constituição, quanto mais expressiva é a qualidade das demandas
existenciais postuladas por uma ordem social como objetivo estatal
mínimo a ser satifeito em proveito da comunidade, maior será a
intensidade com que será exigida sua intervenção e maior a
extensão do conteúdo do que se deva entender por um mínimo
existencial (que se vincula como o resultado de um nível mínimo de
prestações, se preferirmos a fórmula da Constituição italiana).
Se
pudermos assinalar como o Direito financeiro pôde ser exposto nesta
aula, é suficiente enfatizar: a) a relação entre escolhas
(públicas e privadas) e sua capacidade de influenciar a determinação
dos níveis de proteção dos direitos fundamentais e; b) a
intensidade da ação pública para o fim de concretizar esses
direitos, que se encontra vinculado ao que se denomina como um minimo
existencial.
O
Estado (o modelo de Estado contemporâneo) deve ser capaz de
assegurar o desenvolvimento de projetos de vida, definidos livremente
pelos particulares, para o fim de lhes satisfazer pretensões de
bem-estar, desde que estejam integradas e sejam compatíveis com o
que se encontra proposto pela Constituição.
Isto
porque nem todas as pretensões individuais e perspectivas de
felicidade se encontram ou podem ser integradas a uma ordem jurídica.
Alguns comportamentos não o são por razões sociológicas,
culturais e de outras naturezas, e, desse modo, restringem a margem
das liberdades e a extensão do conjunto de opções ao alcance dos
particulares.
Essas
condições e os pressupostos indispensáveis para que essas escolhas
ocorram ou possam ser realizadas, e para que projetos de vida possam
se desenvolver por iniciativa livre dos próprios interessados,
supõem a ação do Estado no domínio do Direito Financeiro. Mais do
que isso, supõem a ação de um determinado modelo de Estado, em
consonância com as demandas e os objetivos requeridos no âmbito
dessa forma política.
Mais
ou menos proteção depende de um contexto sócio-econômico e
cultural, da qualidade e do conteúdo das escolhas que são
realizadas no âmbito de prioridades e necessidades, dos critérios
utilizados para que essa ponderação ocorra e, sobretudo, da
disponibilidade dos recursos.
Por
fim, é importante já assinalar, aqui, que a atividade financeira do
Estado dirige-se a um fim de assegurar a viabilidade de um projeto de
sociedade proposto pela Constituição, que não é um projeto
individual, senão coletivo, destinado a satisfazer as necessidades
de uma universalidade de interessados.
Desse
modo, v.g, o fato de um particular não desejar (na hipótese em que
isto fosse possível) destinar parte de seus rendimentos para o fim
de contribuir para com as tarefas públicas - porque ele mesmo possui
capacidade econômica para obtê-las, ou porque não visualiza os
resultados dessa sua contribuição no plano de ações concretas,
seja para si mesmo ou para a coletividade - não pode influenciar ou
desconstituir seu dever de colaborar para com a ação pública. Isso
porque da garantia de algumas pré-condições estruturais e
institucionais, depende o próprio exercício das liberdades de
todos, mais ou menos assistidos economicamente, e o sucesso e a
viabilidade de seu projeto existencial.
O
Estado protege as liberdades e deve ser capaz de assegurá-las para o
fim de viabilizar níveis mínimos (e universais) de dignidade de
vida.
Para
tanto, a ação pública requer o acesso e a correta destinação de
recursos públicos, em conexão com as necessidades requeridas, e as
demandas suscitadas pela sociedade, e tem como finalidade assegurar
que o acesso a níveis suficientes de bem-estar se dê de forma
universal. Direitos fundamentais constituem a realidade de
concretização da ação pública, e o objeto de interesse do
Direito Financeiro.
Concretizar
níveis de bem-estar implica viabilizar projetos de vida dignos, que
decorrem, por sua vez, de condições capazes de assegurar o livre
desenvolvimento da personalidade. Estas condições supõem que se
deva viabilizar níveis adequados de prestações sociais, econômicas
e culturais, além da conservação de qualidade suficientes dos
recursos naturais.
Os
tribunais internacionais indicam um sentido de indivisibilidade da
definição dos direitos humanos e assim também ocorre com os
direitos fundamentais afirmados pelas Constituições. Um projeto de
futuro é de interesse do Direito Constitucional (de longo prazo),
tem no Direito financeiro o seu instrumento, e exige a consideração
de que qualidade de vida (maior ou menor) sempre exigirá uma ação
mais ou menos intensa do Estado, e representa custos.
Por
outro lado, não se pode atingir realidades existenciais dignas sem
que se tenha acesso integral a todas essas realidades. Um mínimo de
prestações de saúde, ensino, elementos culturais e, sobretudo, a
conservação dos recursos naturais, sendo este último, condição
para o exercício de todas as demais liberdades.
Não
é possível, sob essa perspectiva, exercer as liberdades ou
desenvolver plenamente a personalidade do homem em um espaço público
inseguro, que não garanta proteção pessoal, reparação contra
danos existenciais, degradado, que não proporcione acesso à água
potável em quantidade e qualidade suficientes, alimentação,
moradia em regiões salubres, e trabalho capaz de lhe conferir
dignidade.
Assim,
viabilizar projetos de vida dignos implica exigir uma ação pública
no domínio do meio ambiente, em igual intensidade do que se requer
da ciência e da tecnologia, da educação, da saúde e da cultura.
Dignidade
de vida e o desenvolvimento de um projeto de vida digno depende de um
compromisso permanente do Estado com um projeto de sociedade definido
pela Constituição, e com a concretização de um sentido de
indivisibilidade dos direitos humanos e dos direitos fundamentais,
assegurando a proteção não de uma, mas de todas as realidades
existenciais consideradas indispensáveis para o desenvolvimento da
vida.
Um
mínimo de existência é o resultado da ação do Estado, ao
proporcionar os meios e as condições/pressupostos materiais para o
exercício de escolhas capazes de viabilizar um projeto que seja
digno para si e compatível com os projetos de dignidade de vida
admitidos pela ordem jurídica global.
Nesse
plano de argumentação, o resultado dignidade de vida requer uma
medida de vinculação da ação pública coma transformação da
realidade, visando permitir o usufruto de bem-estar, qualidade de
vida, e de felicidade por todos os membros da comunidade. Esta medida
de vinculação se encontra expressa (poderia sê-lo) sob a fórmula
de um nível essencial de prestações (da Constituição italiana),
mas não apenas no âmbito dos direitos civis e sociais (como na
Constituição italiana), senão também sobre os assim denominados
direitos ambientais.[1]
Um
mínimo existencial é o resultado da garantia de um nível essencial
de prestações por iniciativa de ações do Estado, mas também por
ações de colaboração social da comunidade para com a ação
pública (tributos ou, ainda, a transformação de comportamentos por
influência de um imperativo ou princípio de sustentabilidade, de
crescente afirmação nas experiências domésticas e no Direito
Internacional Público).
Um
imperativo ou princípio de sustentabilidade expõe sua relevância,
porque condiciona o modo como as escolhas públicas definem
prioridades no âmbito da proteção (a intensidade desta proteção)
dos direitos fundamentais.
São
escolhas sobre o futuro e o modo como definem estas prioridades
influencia a capacidade de uma transformação positiva ou negativa
sobre a realidade. Uma escolha que defina como prioridade uma obra
pública que prejudica comunidades tradicionais, e esta vem exigir
reparação no futuro, produz uma realidade nociva para o interesse
público, porque os afetados por aquela escolha equivocada serão
todos os membros da sociedade, em benefício daquela comunidade.
O
mesmo ocorre quando os investimentos em ensino superior não
conseguem demonstrar a obtenção dos resultados esperados, ou quando
as escolhas realizadas não eram adequadas para o fim de se
atingi-los. Um professor que não aproveita ou não proporciona que o
tempo utilizado no processo de ensino-aprendizagem converta-se em
resultados úteis para todos (satisfação pessoal e aperfeiçoamento
individual e coletivo no grupo) propõe um uso irracional de meios (e
de recursos) que não atende a qualquer finalidade de interesse
público ou mesmo privada. Não são proporcionadas as prestações
sociais do interesse da comunidade acadêmica, e não se atende a um
princípio de eficiência econômica. O tempo dedicado a uma ação
que não produz consequências demonstra um uso irracional de
recursos.
As
decisões e escolhas públicas que se revelem equivocadas, erradas, e
inadequadas sempre produzirão efeitos e consequências nocivas para
uma universalidade.
Para
ilustrar esta realidade, um exemplo vinculado mais
uma vez aos investimentos no ensino superior é bastante
representativo. Diante dos estudos empíricos disponíveis sobre as
políticas públicas educacionais, resulta cada vez mais seguro
afirmar que o gestor que propuser, como meio para aumentar os níveis
de escolarização no ensino fundamental, ações no plano de
investimentos em obras (construção de escolas e creches) não
conseguirá atender a essa finalidade. Uma ação pública incoerente
com a finalidade que pretende atingir produz desperdício, e o uso
excessivo de recursos, porque para a finalidade não atendida,
deverão ser destinados recursos adicionais para a correção daquela
ação inadequada e insuficiente. Estes recursos adicionais
destinados seguramente desfavorecem no plano universal e o
desenvolvimento de ações que poderiam contribuir para outros
projetos de vida.
Outro exemplo que
ilustra a relação entre o modo como são realizadas as escolhas,
sejam estas públicas ou privadas, e os níveis de bem-estar,
qualidade de vida e de felicidade decorrentes dos direitos
fundamentais: uma determinada lei municipal assegura o acesso
preferencial a portadores de necessidades especiais (deficiência
permanente), vagas públicas de estacionamento mediante o registro e
renovação anual, sob pena de cessação dos efeitos da autorização.
Em
outras palavras, aquele que possui restrições motoras a sua
mobilidade, cegueira permanente, deve demonstrar e provar, anualmente
que perdeu um membro e que permanece cego (como se fosse possível a
restauração e a regeneração dos membros ou das capacidades
perdidas) para o fim de ter acesso ao benefício.
Estas
escolhas propõem uma forma de se atender a uma finalidade de
interesse público que implica maiores restrições à liberdade dos
particulares, aumentam os custos da ação pública para assegurar
aqueles benefícios, e degradam a dignidade daqueles que deveriam
tê-la sob proteção reforçada.
Podemos
ilustrar a relação de colaboração que define os processos de
concretização dos direitos fundamentais, e de projetos dignos de
vida (sua intensidade varia de acordo com o êxito na concretização
de maior ou menor conjunto de realidades existenciais, e de direitos
sociais, econômicos e culturais), enumerando três exemplos:
Primeiro
exemplo: Um copo jogado em uma galeria
fluvial sob o argumento de que ninguém viu, que a chuva limpa ou,
ainda, que dessa forma as vias públicas permanecerão limpas. Esse
copo será conduzido aos rios ou corpos hídricos urbanos, não é
degradável, pode contribuir para o acúmulo de resíduos que
contaminam as águas e inviabilzam seu consumo pelo homem, poderão
ser ingeridos por animais e responder pela sua mortandade, exigirão
mais investimentos públicos para o tratamento das águas, poderão
obstruir as galerias e favorecer o acúmulo de águas nas vias,
comprometendo a cobertura asfáltica e que terá de ser reparada,
entre as consequências mais visíveis;
Segundo
exemplo: A omissão das prefeituras
municipais na fiscalização e no controle do depósito de resíduos
nos bairros. O lixo de feiras e de outros bairros é depositado
sistematicamente em regiões muito próximas às ruas e às casas de
seus moradores, favorecendo a contaminação de solos, proliferação
de vetores de doenças e exposição de toda a população a esses
fatores de riscos, que, posteriormente, exigirão a elevação das
despesas para atender ações do sistema de saúde, no interesse e em
benefício dessa população. A redução das despesas em razão da
omissão de um dever de proteção estatal pode gerar consequências
nocivas para toda a universalidade, pelo aumento de despesas em
detrimento do atendimento de outras ações.
Sob
a consideração de um imperativo de proteção de um princípio de
dignidade de vida, que exige o aperfeiçoamento nos níveis de
proteção, a melhoria na qualidade de vida, e a progressividade como
vetor de ordenação das escolhas sobre prioridades públicas, a
redução das despesas nunca pode ter origem na falha ou na
deficiência da proteção de qualquer modalidade de direitos
fundamentais, porque a concretização de um mínimo existencial
depende da realização coordenada e interdependente de todas as
realidades existenciais, sociais, econômicas e culturais, para que
possa ser viabilizada.
A
intensidade da concretização de cada uma dessas realidades está
condicionada à avaliação concreta das necessidades e demandas,
combinada com a disponibilidade dos recursos. Se por um lado, as
demandas existenciais expõem um imperativo de proteção que
determina que intensidade e que setor social deverá ser atendido com
maior prioridade, a ponderação sobre esses fatores condiciona o
resultado protetivo que poderá ser obtido, ou que
seria exigível obter-se por meio da ação do Estado. O primeiro
juízo de ponderação propõe o que se deverá proteger, e o segundo
juízo determina o que se poderá proteger, e como o será possível.
O terceiro
exemplo expõe um diagnóstico sobre a resultados das
políticas públicas educacionais no Brasil: um comício que foi
marcado para a recepção do presidente dos EUA teve de ser
cancelado, porque a maior parte da população não o conseguiria
compreender. Estes resultados têm origem na ausência de uma
política pública consistente e permanente comprometida com uma
sociedade culturalmente aberta e não podem ser corrigidos com ações
de curto prazo.
No
mesmo sentido, um exemplo próximo do segundo também
ilustra com clareza a relação de colaboração que define o êxito
da tarefa estatal de proteção de um mínimo existencial no plano
dos direitos fundamentais, além de definir que a consecução deste
mínimo nunca poderá ser obtida por meio da redução das despesas
com as prestações existenciais essenciais no âmbito da saúde,
ensino, ou outras demandas sociais, econômicas e culturais. A
redução na oferta de prestações essenciais não pode ser, nunca,
uma alternativa para a redução da despesa pública sob o sofístico
e sedutor argumento da eficiência e da economicidade.
Tome-se,
para demonstrar o argumento, a seguinte situação de ocorrência
cotidiana em qualquer capital brasileira:
Em
uma grande rede de supermercados, um consumidor constata que
derivados de laticínios e ovos encontram-se próximos de sua data de
vencimento e, ainda assim, são normalmente disponibilizados e
comercializados pela rede de comércio, com os mesmos preços e sem
qualquer informação adicional que permita que o consumidor realize
uma escolha bem informada, inclusive para o fim de lhe assegurar
proteção à sua saúde contra riscos desta natureza, ou contra
riscos sanitários.
Trata-se
de um ilícito administrativo que, em nome da segurança sanitária,
poderia justificar perfeitamente uma ação de polícia por
iniciativa dos órgãos públicos de vigiliância sanitária, no
município e no Estado. O supermercado poderia ser, preventivamente,
interditado e ter o exercício de sua liberdade comercial
restringida, circunstancial e justificadamente, mas apenas enquanto
fosse suficiente, em nome da proteção da saúde humana.
Ocorre
que a ação de polícia administrativa não se tem demonstrado
eficiente, chegando ao ponto de sistemática omissão, único
comportamento que permitiria compreender tamanha indiferença dos
comerciantes ao ponto de proporem livremente a comercialização de
produtos proibidos, mesmo que cientes das sanções, e da capacidade
de comprometer a saúde humana.
Temos,
aqui, um problema que interessa, ao mesmo tempo, uma decisão com
efeitos sobre a proteção de direitos fundamentais, e uma decisão
sobre os custos das medidas que terão de ser adotadas pelo Poder
Público para atingir o resultado segurança sanitária. Que ação
poderia proporcionar segurança sanitária e proteção da saúde,
sob o ângulo da menor restrição financeira, sem comprometer
excessivamente os recursos públicos? Uma ação permanente de
fiscalização e monitoramento, de conteúdo essencialmente
preventivo, para a qual seria exigível a participação de
servidores públicos em rotinas periódicas? Ou, ainda, uma ação
estatal condicionada à motivação e iniciativa do sujeito lesado,
interessado ou ofendido com o ilícito, que já tivesse experimentado
prejuízos? Nesta segunda ação, é visível que a despesa pública
para a ação de polícia seria muito menos expressiva, porque os
fiscais atuariam exclusivamente quando fosse necessário, e quando se
demonstrasse concretamente, uma realidade de perigo atual e imediato.
Uma despesa pública, nesta realidade, encontraria sua justificação
concreta em um juízo de certeza. Uma despesa pública encontraria,
na primeira realidade, justificação baseada em um juízo
hipotético, de estimativa e baseado em uma racionalidade de
prevenção.
A
que espécie de racionalidade se encontra vinculada a ação pública
para se justificar uma despesa pública? Quando se considera um dever
estatal de proteção, a conclusão somente pode ser uma: a todas as
alternativas que permitam assegurar este resultado. Um juízo baseado
em uma equação custo-benefício propõe uma leitura parcial e
deficiente da ação pública, principalmente quando os custos
(despesas) das medidas são avaliados de forma parcial.
Retomemos
o exemplo do laticínio com o
prazo de validade vencido, encontrado em um supermercado da capital.
Uma ação preventiva só poderá ser considerada mais onerosa para o
Estado, porque não foram considerados todos os custos envolvidos no
problema. Por meio de uma ação preventiva, estados nocivos, fontes
de riscos e de ameaças à saúde poderão ser eliminados. Esta ação
atua positivamente sob o ângulo financeiro se consideramos que serão
evitados, estabilizados ou diminuídas desepesas com serviços do
sistema de saúde, decorrentes de intoxicações alimentares,
distúrbios dos mais distintos, além de mortes pela ingestão de
alimentos em estado impróprio para o consumo. Por outro lado, uma
ação que atue apenas quando for demonstrada a realidade do dano (e
não uma realidade verossímil de ameaça) somente será exposta como
uma ação econômica, se aqueles custos externos, mas vinculados à
escolha pública, forem desconsiderados. Os custos/despesas da ação
de polícia serão inferiores, mas os custos/despesas globais do
serviço público serão superiores, porque outros serviços serão
demandados em razão da omissão e da deficiência de outro serviço
público, neste caso, de fiscalização e de segurança sanitária.
Corrupção
gera desperdício (uso irracional dos recursos públicos), assim como
escolhas públicas equivocadas, incoerentes, e comportamentos
privados incapazes de expor um compromisso responsável com um
projeto digno de sociedade.
Um
Estado ambiental é um Estado que tem um compromisso reforçado para
com o futuro, e deve ser capaz de assegurar a concretização de
condições essenciais ao desenvolvimento das escolhas por cada um
dos membros da coletividade. Estas, por sua vez, definirão projetos
de vida, coerentes com o projeto de sociedade daquele Estado
ambiental, que se guiam por um imperativo de integridade ecológica,
da Carta da Terra.
Todos
estão comprometidos com a viabilidade da existência de todas as
formas de vida. Por meio de ações do Estado e do livre exercício
de projetos de vida coerentes com os objetivos de um Estado
ambiental, assegura-se o livre desenvolvimento da existência humana,
e de todas as demais formas de vida. Assegurar a restauração dos
processos ecológicos essenciais denota esse compromisso de alcance
alargado, que beneficia todas as formas de vida a partir das ações
que assegurem a durabilidade da existência humana, em uma relação
que não é de autonomia, senão de reciprocidade.
Uma
má escolha protege mal os direitos fundamentais, e inviabiliza o
acesso a um nível suficiente de qualidade de vida. Sempre que
qualquer uma das realidades existenciais não puder ser assegurada em
níveis suficientes pelo Estado, seja porque este se omitiu ou atuou
de forma insuficiente, ter-se-á consequências no plano da realidade
de proteção, que também se revelará incompleta, parcial,
deficiente e insuficiente.
Um
problema de grande interesse contemporâneo para a proteção de
direitos fundamentais tem origem no modo como os Estados compreendem
e identificam a visibilidade dos riscos representados pelas
transformações climáticas globais. Em razão da divergência entre
os cientistas do painel do IPCC e os cientistas céticos, uma escolha
prudente indicaria que, diante da dúvida e da incerteza sobre a
realidade de riscos que possuem um elevado potencial de comprometer a
existência de todos de forma irreversível, uma decisão
precaucional admitiria a existência do fenômeno, e justificaria a
adoção de ações para a sua mitigação.
Tratando
o problema sob o ângulo da atividade financeira, a questão é: em
que medida é justificável que sejam destinados recursos públicos
para o custeio de ações que atenderão à proteção contra riscos
que, sequer, se sabe de sua existência? O que justifica uma ação
precaucional? Uma realidade de danos, ou uma realidade verossímil de
riscos é suficiente? Vide, neste caso, o exemplo do custeio de
tratamentos experimentais pelo Estado, ou, ainda, a questão dos
custos das ações de fiscalização, quando se destinem,
restritivamente, ao monitoramento dos danos, e não ao controle
preventivo e permanente.
5.
Conclusões parciais.
O
que podemos concluir: O estudo do
direito financeiro não envolve apenas a análise de normas
financeiras, de orçamento público e das leis 4.320/1964 e LC n.
101/2000. O descumprimento de normas ambientais, civis, urbanísticas,
sanitárias produz repercussões sérias para as escolhas públicas e
consequências graves para o equilíbrio das relações de
solidariedade apontadas pela Constituição, e que devem permear a
atividade financeira do Estado.
O
aumento dos níveis de poluição atmosférica, a poluição de solos
e das águas por atividades econômicas como curtumes, indústrias de
bebidas, indústrias químicas, olarias, e outras, resulta, como
consequência direta, a perda de qualidade de vida de toda a
sociedade, que suporta de forma coletiva os ônus de tais atividades,
em proveito de poucos beneficiários. Temos, aqui, a visível
descrição de um estado de desequilíbrio nas relações de
solidariedade definidas pela Constituição para a garantia das
tarefas públicas. Os custos de tais atividades se implicam em
proveito individual, não podem ser suportados por toda a
coletividade.
Se
uma usina hidrelétrica não realiza um estudo
prévio de impacto ambiental, que é o instrumento capaz de expor um
diagnóstico e um prognóstico do conjunto dos efeitos negativos
prováveis relacionados ao projeto, não for suportado pelo operador
econômico, é a sociedade que responderá pelos
mesmos, suportando as externalidades (perda de qualidade de vida) e
os custos públicos das medidas que terão de ser adotadas pelo
Estado para mitigar, obstar, recuperar e restaurar os danos
produzidos (custos com o sistema de saúde pública, com a
despoluição de rios, solos, ar, recuperação de espaços naturais,
etc...).
A
não imputação dos custos dessas externalidades àqueles que tenham
contribuído efetivamente para sua produção gera um estado de
desequilíbrio nas relações de justiça, com graves consequências
para as relações existenciais de toda a sociedade. Daí a
necessidade de, sempre que examinarmos o conteúdo financeiro da
atividade estatal, vincularmos essa análise e a situarmos nesse
amplo contexto da organização contemporânea do Estado
constitucional de Direito, que fortalece as noções de
responsabilidade, solidariedade, de cooperação e, sobretudo, de
equilíbrio, que vedam a reprodução de cenários de injustiça
econômica na repartição dos encargos sociais.
Se
é correto admitir que a proteção de direitos fundamentais de forma
isonômica depende do envolvimento necessário e da repartição de
encargos entre o Estado e toda a coletividade beneficiária de uma
rede de proteção social, não o é sustentar que a toda a sociedade
deva suportar, financeiramente, os efeitos de escolhas individuais. A
sociedade não pode e não deve suportar encargos que decorrem de
escolhas e de excessos no exercício de liberdades econômicas e
civis de poucos.
Os
custos de ações públicas, como a despoluição de um rio, decorrem
diretamente de escolhas que foram realizadas previamente por
particulares e pelo próprio poder público (escolhas inadequadas,
excessos no exercício de suas liberdades). O resultado dessas
escolhas equivocadas produz influência sobre a atividade financeira
do Estado, que exigirá a colaboração do particular, na repartição
dos custos pela proteção de direitos fundamentais, ou de custos
para assegurar o exercício de direitos fundamentais que já foram
violados. Obrigações de fazer, nesse sentido, resultam em custos ao
Estado, custos que geralmente serão suportados pelo particular, na
forma de exações tributárias. Por este instrumento, o Estado exige
a cooperação e a colaboração financeira de toda a coletividade
para o fim de proteger direitos fundamentais. Obrigações de não
fazer, em geral, resultam em imposições sem ônus financeiros (v.g,
a obrigação de não depositar resíduos ou eliminar dejetos sem
tratamento, no solo ou nos cursos hídricos).
Mitigar
ou, ainda, procurar a adaptação perante os efeitos das mudanças
climáticas globais passa, hoje, por uma franca discussão sobre o
comportamento do Estado em relação às suas despesas. Como o Estado
aplica os recursos públicos que estão à sua disposição também
constitui, neste momento, objeto de relevância para a organização
das ações e medidas para o enfrentamento de semelhante cenário de
riscos. De acordo com as decisões que o Estado realiza sobre como
empregar os recursos à sua disposição, ter-se-á melhores
condições para mitigar os efeitos das mudanças climáticas
globais. Portanto, as despesas públicas e o comportamento financeiro
do Estado também interessa, primeiro, à qualidade de vida, à
proteção do meio ambiente, à redução dos riscos existenciais,
neste caso, relacionados à definição de políticas públicas
capazes de assegurar a proteção da humanidade, perante os efeitos
das alterações climáticas extremas.
Problema
para reflexão: Nem só de proibições
e restrições [ações de comando e controle] depende a definição
das escolhas públicas sob o âmbito financeiro. Políticas públicas
de transparência, que sujeitem as funções públicas ao dever de
proteger e assegurar o acesso à verdade, proporcionando informação
suficiente e oportuna sobre os riscos de processos, técnicas,
tecnologias, substâncias, e sobre o estado do meio ambiente, expondo
a realidade dos fatos sobre alternativas sustentáveis, advertindo
sobre as conseqüências de determinados modelos de consumo e de uso
dos recursos naturais, asseguram a oportunidade de que melhores
escolhas possam ser realizadas. Destas escolhas resultará uma
repartição mais ou menos equilibrada dos encargos e dos deveres de
solidariedade coletiva para o fim de garantir que um mínimo de
condições para a existência de todos possa ser atingido pela ação
estatal. Melhores escolhas são realizadas com informação
suficiente, sendo razoável admitir que é bastante mais provável
que escolhas inadequadas, deficientes ou inoportunas [que terão
consequências sob o plano da elevação ou diminuição dos encargos
entre toda a coletividade, ou melhoria na distribuição e destinação
dos recursos disponíveis] em um cenário de ignorância, no qual a
informação necessária não esteja disponível ou não seja
acessível a todos os interessados em condições de influenciar de
modo relevante o processo de repartição dos encargos.
Concluindo:
Um aspecto importante que deve ser considerado ao longo de toda a
disciplina é a responsabilidade
do gestor público no uso de recursos que têm origem no patrimônio
do particular, para o único objetivo de atingir tarefas e atender a
necessidades no interesse da coletividade.
A
proteção dos interesses dos particulares deriva da noção de
accountability. Os excessos da representação se
traduzem em desperdício, desvios de recursos, que, por sua vez, se
traduzem em omissões lesivas a direitos fundamentais, representando,
concretamente, degradação existencial ou diminuição da qualidade
de vida. É condição para o desenvolvimento das democracias e
existência de instituições que tiveram atribuídos poderes para
fiscalizar o exercício dos poderes de representação, protegendo a
sociedade da hipótese de excesso nessa representação. Daí a
importância para os mecanismos de controle, internos e externos (as
comissões internas e os tribunais de contas nos Estados e na União).
Portanto,
por que a abordagem que se encontra exposta é importante? A meta é
enfatizar, ao longo do curso, uma forte vinculação do que se fará
na exposição teórica de conceitos e fundamentos ao plano da
realidade fática, do cotidiano, e da rotina de cada um de nós, em
nosso dia-a-dia. O passo decisivo para atingir esse objetivo está em
ressaltar que as consequências no plano material, refletidas em
qualidade de vida, direitos, assistência, ou mesmo da própria
garantia de sobrevivência física, decorrem, antes de mais nada, não
da mera declaração de direitos ao longo de uma constituição
escrita. Todo o conjunto dessas consequências decorre,
necessariamente, de escolhas que são realizadas aqui, escolhas sobre
como, onde e por qual motivo destinar recursos para determinadas
atividades, e para atingir estas e não aquelas prioridades,
objetivos, tarefas. Disto decorre a concretização de determinados
direitos fundamentais, melhoria de qualidade de vida e a própria
sobrevivência física.
6.
Indicações bibliográficas
ACKERMANN,
Bruce. A nova separação dos poderes. Trad. de: Isabelle
Maria Campos Vasconcelos, Eliana Valadares Santos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009.
AGAMBEN,
Giorgio. Homom sacer. O poder soberano e a vida nua.
Trad. de: Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
CHULVI,
Cristina Pauner. El deber constitucional de contribuir al
sostenimiento de los gastos públicos. Madrid: CEPC, 2001.
CHEVALIER,
Jacques. O Estado pós-moderno. Trad. de: Marçal Justen
Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
FERRAJOLI,
Luigi. A soberania no mundo moderno. Trad. de: Karina
Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FLEISCHACKER,
Samuel. Uma breve história da justiça distributiva.
Trad. de: Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
GROSSI,
Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Trad. de:
Arno Dal Ri Junior. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
MAUS,
Ingenborg. O direito e a política. Teoria da democracia.
Trad. de: Enisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
MURPHY,
Liam; NAGEL, Tomas. O mito da propriedade. Trad. de:
Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
NABAIS,
José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos.
Coimbra: Coimbra, 1997.
TAVARES,
André Ramos. Direito constitucional econômico. São
Paulo: Método, 2003.
THALER,
Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge.
Improving decisions about health, wealth and happiness. New
Haven: Yale University Press, 2008.
[1] Se
não se admitir que a qualidade dos recursos naturias também faz
parte de um projeto de sociabilidade e de vida sob o próprio ângulo
dos direitos sociais, ou ainda, se não for admitido que a qualidade
dos recursos naturais é condição para o exercício de qualquer
liberdade (civil, cultural, ou econômica), como reconhece a Suprema
Corte das Filipinas.