terça-feira, 27 de maio de 2014

AULA 02

Aula 02/2014


Tema: Direito financeiro: objeto e definições. Necessidades públicas e atividade financeira do Estado. Competências legislativas.

1. Síntese da aula anterior: (dignidade de vida, direitos fundamentais, e a relação entre escolhas e conseqüências para a transformação da realidade).

Vamos recuperar o conjunto de problemas da aula anterior com a análise de um exemplo de grande interesse para os Estados nacionais, para os atores da sociedade internacional, e para a humanidade.
Diante de um cenário de incerteza, os Estados precisam realizar suas escolhas sobre como vão enfrentar os cenários que são visíveis, e de acordo com o conhecimento científico que está disponível neste momento, mesmo que este conhecimento não tenha condições de expor conclusões.
Nesse contexto, as convenções e tratados climáticos representam uma escolha da sociedade internacional, sob uma abordagem que privilegia um princípio de precaução.
Trata-se aqui, de uma escolha que reconheceu serem as transformações climáticas globais como uma ameaça global capaz de motivar um compromisso comum.
Como cada Estado-nacional vai contribuir para a redução das causas das transformações climáticas, que já foram identificadas? Como cada Estado-nacional vai reduzir emissões? Isto dependerá de decisões nacionais, que decorrem da capacidade econômica e financeira de cada um, em privilégio de um princípio de Direito internacional do meio ambiente: as responsabilidades são comuns, mas diferenciadas (princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada).
O princípio da precaução no contexto de transformações climáticas globais sugere que, na dúvida, os Estados deverão tomar decisões (e estarão autorizados a fazê-lo) que favoreçam a existência da vida e sua continuidade, mediante a garantia de sua viabilidade, e a restauração e proteção dos processos ecológicos terrestres.
Não é possível o exercício de liberdades econômicas sem que se tenha um mínimo de intervenção, ou alguma medida de intervenção sobre os recursos naturais. Essa medida mínima de intervenção exige um mínimo de proteção, ao menos sobre os processos essenciais ao desenvolvimento de todas as formas de vida. Aqui ganha expressão um princípio da Carta da Terra, o princípio da integridade ecológica (princípio 5.1).
Os cientistas céticos supõem que as transformações reproduzem um processo natural de transformações físicas, produzem conhecimento científico baseado em boa ciência, argumentos válidos, demonstráveis, mas ciência minoritária. O painel do IPCC é um painel de cientistas, produziu boa ciência que posteriormente foi contestada, mas ciência majoritária. Não há aqui a verdade ou verdades, senão divergêcia científica, o que exige uma escolha por iniciativa das nações. A escolha foi expressa como um consenso global que reconheceu a relevância das conclusões do painel de cientistas do IPCC e de sua boa ciência. A consideração dessas conclusões levou à formação de um consenso global capaz de ter gerado convenções climáticas.
A questão suscitada aqui é: Por que razão os EUA não subscreveram e não subscreverão uma convenção climática? Porque o que eles desejam é uma demonstração clara que justifique assumirem custos e despesas para ações que sequer se sabe sobre sua eficácia e eficiência, ou ainda, sequer se consegue demonstrar claramente a realidade dos riscos e das ameaças.
Por que uma nação deve atuar mesmo diante da incerteza científica sobre a realidade dos riscos ou de seus efeitos, ou ainda, diante da incapacidade de se demonstrar a eficácia das ações custeadas, e a realidade da causa eficiente?
Se essa causa não se demonstrar eficiente, ou se os efeitos não puderem ser úteis ao resultado atingido, ter-se-á o uso de recursos que poderiam ser destinados ao atendimento de realidades concretas e que teriam condições de ser enfrentadas por meio de ações eficientes ao juízo do conhecimento científico disponível.
Como justificar para um determinado modelo de sociedade, que recursos públicos serão destinados para atender medidas como a transformação da matriz energética, de alto custo, em detrimento de ações mais concretas que podem atender com maior eficiência estados de risco que precisam ser removidos (saneamento ambiental, etc...)? Reside nessa indagação o centro do principal desafio suscitado ao Direito financeiro e ao Direito público contemporâneo: como assegurar a melhor forma de proteção de um extenso conjunto de direitos fundamentais, a melhor forma de viabilizar o desenvolvimento de projetos dignos de vida, em uma realidade de escassez de recursos financeiros?
Passemos para a análise de outro conjunto de exemplos para o fim de suscitar uma reflexão sobre a relação entre escolhas e os efeitos dessas escolhas para a proteção de realidades dignas, por meio de direitos fundamentais.
A redução dos riscos existenciais como tarefa de Estado é uma tarefa comprometida com um princípio de sustentabilidade. Este enfatiza a finalidade de se assegurar a durabilidade e, sobretudo, a viabilidade da vida. Se desejamos um projeto viável de futuro, é imperativo que toda a ação do Estado e também assim, a ação social, guiem-se e proponham cenários que favoreçam esse objetivo.
Sendo assim, quando se afirma a inviabilidade de se reconhecer um projeto digno de vida em um cenário no qual há bairros e loteamentos em sítios contaminados, residências localizadas no entorno de aterros sanitários, usinas nucleares, aeroportos, indústrias químicas, olarias, fábricas de pneus, e quando se afirma que não é possível exercer liberdades em um meio ambiente contaminado, não se está propondo a eliminação de todas as fontes e causas de poluição.
Estamos trabalhando aqui com a noção de limites de tolerabilidade. O que a sociedade, um projeto de vida definido pela ordem jurídica daquela realidade propôs? O que aquela ordem jurídica define como socialmente admissível para o exercício das liberdades?
Note-se que aqui há uma forte exposição de uma necessidade de conciliação entre proteção do meio ambiente e liberdades econômicas. Se estas são importantes para o desenvolvimento de uma vida digna e de níveis de bem-estar socialmente desejáveis, é relevante reconhecer que nenhuma liberdade econômica pode ter origem senão a partir do uso e do acesso aos recursos naturias. Portanto, em uma ótica utilitária e egoísta, a sua proteção, e a proteção de sua durabilidade, também interessa à durabilidade da atividade econômica.
Então não se trata de eliminar a poluição e a contaminação, senão de reduzir-se os riscos, eliminando-se os níveis que possam representar comprometimento da existência humana. Como se faz isso? A partir de conhecimento científico, de informação e, sobretudo, de decisão bem-informada, que a partir de cenários verossímeis, prováveis, esperados, possa ser adotada uma medida capaz de mitigar, ou de não permitir o avanço de cenários indesejáveis, ou nocivos à sociedade, ou ainda, de cenários com riscos catastróficos que não podem ser revertidos sob qualquer ângulo, financeiro, social ou ambiental.

O risco catastrófico e o risco irreversível geralmente definem e influenciam escolhas precaucionais, e deste modo, justificam despesas para o financiamento de ações sem prova conclusiva de que serão NECESSÁRIAS. Indaga-se: porque se deve autorizar uma despesa com uma ação que sequer tem condições de demonstrar NESTE MOMENTO, sua NECESSIDADE? Porque em uma realidade em que estudos científicos, ainda que inconclusivos, têm condições de propor um cenário de efeitos irreversíveis, a simples hipótese de que ocorram, podem gerar consequências que, se concretizadas, não poderão ser enfrentadas ou seguradas. NESTES casos, e este é o caso das transformações climáticas globais, a despesa pública tem origem legítima na interferência de um princípio de precaução.
Portanto, se a realidade dos riscos ou da ameaça se revelem, à luz do conhecimento científico disponível, de tal monta que, se na hipótese de ocorrerem, produzirão conseqüências irreversíveis ou que não possam ser reparadas sob qualquer ângulo, os Estados poderão e deverão realizar despesas a partir deste momento, visando não permitir que as ameaças se concretizem. As ações poderão ser preventivas ou precaucionais, de acordo com a qualidade da informação científica disponível (ou não), conforme será analisado no último ano, na disciplina Direito Ambiental.
A qualidade do meio ambiente é um aspecto do bem-estar e integra qualquer projeto de existência humana digna em uma república como a do Estado ambiental brasileiro. Ruído representa poluição sonora, perturbação do meio ambiente que afeta a privacidade e esta conexão entre direitos ambientais e direitos de liberdade clássicos já foi reconhecida no caso do aeroporto de Heathrow, pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos.
Outro aspecto relevante que merece ser enfatizado é o da impossibilidade de se distinguir entre direitos de liberdade e direitos à prestação no plano dos custos para o seu financiamento. Todos envolvem juízos sobre despesas. Assim, a proteção do direito à vida privada e à propriedade nunca seria possível sem que fosse instituído um sistema de justiça eficiente, que proporcionasse reparação e prevenção contra danos pessoais e contra os bens.
Por outro lado, não é possível se falar em proteção suficiente sob uma perspectiva que favoreça qualquer uma daquelas realidades, em detrimento de outra. Bem-estar somente é possível a partir da garantia de acesso aos benefícios de todos os direitos fundamentais, ainda que em níveis mínimos e variáveis. Esta modulação dependerá de cada contexto social, econômico e cultural. Algumas sociedades estarão mais aptas financeiramente e proporão demandas de maior intensidade na proteção de direitos de liberdade, outras de direitos sociias, outras de todos os direitos em níveis máximos. Outras nações terão desafios de outras ordens para a ação pública, no plano de políticas migratórias, acesso ao trabalho, desenvolvimento de setores da economia, entre outros.
Nessa perspectiva, se a proteção de todos os direitos representa alguma medida de comprometimento dos recursos financeiros de um modelo de Estado, confirmando a tese de Cass Sunstein, é de outra obra do jurista norte-americano que podem ser extraídas contribuições para o aperfeiçoamento do desenvolvimento humano em uma perspectiva integrativa e holística, que relacione a natureza e o bem-estar humano em um processo de reciprocidade onde as ações e benefícios atuam de forma integrada.
Sunstein e Thaler acentuam que o modo como são realizadas escolhas e tomadas as decisões contribuem decisivamente para um projeto de futuro, de bem-estar e de felicidade. O modo como a ação pública define suas tarefas e seus comportamentos, como favorece o comportamento social e influencia a transformação de comportamentos pode contribuir decisivamente para a transformação da realidade, com benefícios existencias para toda a coletividade (licitações sustentáveis, aquisição de produtos ambientalmente certificados, investimentos no serviço público de transporte, tecnologias que estimulem o desenvolvimento de alternativas energéticas economicamente viáveis e sustentáveis).
No contexto das transformações climáticas extremas, convém analisar um exemplo mais concreto de medidas que sejam tomadas nesse plano. Uma delas é o investimento em políticas de desenvolvimento de novas tecnologias para uma matriz energética menos poluente. Ou no sistema de saúde, a partir de diagnósticos que apresentem a elevação nos números de atendimento por doenças respiratórias, ou ainda, por meio de leis restritivas do uso do cigarro com a mesma finalidade.
Para exemplificar a necessidade de colaboração entre o Estado e a sociedade na gestão racional da despesa pública, tomemos como exemplo as campanhas publicitárias que enfatizam a mudança de comportamentos para auxiliar no combate às causas da doença. Aquele que não adotar as medidas preventivas compromete a eficiência da ação. Esta escolha, privada, é nociva para o interesse de uma coletividade.
Da mesma forma, se o Estado exige que suas compras terão de exigir a demonstração da segurança ambiental dos produtos, a sociedade será influenciada a atender estas escolhas, reduzindo o desmatamento ilegal e reduzindo a despesa com as ações de polícia, permitindo que estes recursos sejam destinados para outras ações igualmente prioritárias.
A existência digna de todos nós depende de que o Estado se comprometa a afastar todos os riscos que a ameacem, e assegure a realização das condições de infra-estrutura, serviços e prestações que sejam essenciais ao seu desenvolvimento.
O Estado deve ser capaz de favorecer as condições para o desenvolvimento de projetos dignos de vida, que significa em última análise, uma existência duradoura e decente.
Para tanto, o Estado deve viabilizar o desenvolvimento da pessoa, assegurando-lhes o acesso a níveis essenciais de várias prestações, porque a insuficiência, a falha, a omissão e a incapacidade estatal. Uma atuação parcial e limitada do Estado, que favoreça serviços de saúde e ensino, mas que não consiga auxiliar no acesso à moradia salubre e digna, representa um defeito na proteção, passível de ser corrigido pela ação das outras funções de Estado.
O valor dignidade de vida se encontra definido pela Constituição como um objetivo da república, interage com uma cultura universal de direitos humanos, e condiciona a ação do Estado e o exercício de todas as liberdades econômicas.
A Constituição define um projeto de futuro, que é viabilizado e concretizado por meio das escolhas realizadas no âmbito de um orçamento, cujas prioridades serão definidas de acordo com as necessidades de proteção, que são diferenciadas e variam de acordo com contextos sociais, econômicos e culturais.
Proteção para o meio ambiente, despoluição de recursos hídricos, inclusão digital e social de grupos vulneráveis, proteção de povos indígenas, mobilidade urbana, acessibilidade aos portadores de necessidades especiais, políticas de habitação. São todas ações que propõem um modelo e programa de futuro, limitado a quatro anos, e no plano do desenvolvimento permanente do objetivo dignidade, devem ser coerentes e ser capazes de se comunicarem entre os mandatos e gestões. A interrupção entre as ações desfavorece a continuidade de um projeto de futuro para a existência do homem, e de desenvolvimento de sua personalidade, por meio de prestações universais e coletivas.
Serviço público decente é tarefa de Estado e sua inexecução representa um direito a partir da consideração do valor dignidade. O princípio contribui para a fundamentação de um conjunto de direitos, sociais, culturais, ambientais, econômicos. Note-se o caso do aeroporto de Heathrow, julgado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Qualidade de vida foi identificada como vinculada ao direito à privacidade e justificou a derivação de um direito ao meio ambiente salubre e livre de riscos que possam inviabilizar sua existência.
Aumentar o serviço público de transporte favorece a retirada de veículos, contribui para a redução de emissões. Mas por outro lado, como esse serviço é prestado? É digno tomar um ônibus nas condições que se verifica diariamente, com superlotação e desconforto? A falha no serviço público e o controle social do serviço público justifica direitos, e reforça que os objetivos do Estado são: a) favorecer a existência digna do homem, permitindo que se desenvolva como pessoa; b) concretizar o interesse público, cujo conteúdo é redefinido e ganha complexidade nas sociedades contemporâneas, suscitando tarefas cada vez mais extensas. Proteção social e proteger o interesse público nestas sociedades impõe desafios em setores antes inimagináveis, da segurança pública ao meio ambiente; c) assegurar que os recursos financeiros disponíveis consigam proporcionar os níveis de bem-estar esperados e propostos por um projeto político, de uma Constituição, e de uma cultura universal dos direitos humanos.
Analisando os exemplos referidos na aula anterior, pode-se constatar que:
a.       o aumento da despesa em razão de decisões privadas equivocadas e falha na ação de monitoramento do Estado. A consequência foi a elevação nas despesas de reparação e recuperação dos danos (vazamento de óleo);
b.      A ausência de políticas de saneamento ambiental representa a elevação na despesa com ações no sistema único de saúde;
c.       O excesso no exercício de liberdades econômicas (queima de palha de cana-de-açúcar) e a falha na ação de polícia administrativa representa um efeito nocivo para toda a coletividade, que perde qualidade de vida, respirando ar contaminado com índices inaceitáveis de enxofre;
d.      A ausência da ação de polícia administrativa sobre o desamatamento de biomas representa elevados custos de restauração dos danos, além de perda de qualidade de vida, com a redução dos estoques de água potável, erosão de solos, perda de produtividade, diminuição da produção de alimentos, perda de serviços ecossistêmicos.
PORTANTO, escolher mal implica proteger mal o conjunto de necessidades essenciais e indispensáveis a existência do homem.
Proteger mal tais necessidades implica obstar as condições para o livre desenvolvimento da personalidade em um espaço democrático.

2. Problemas importantes:

Analisando todos os problemas expostos poderíamos enumerar como principais questões de interesse para a disciplina as seguintes:
·         Por que é necessária a proteção?
·         Que nível de proteção se deseja, está proposto pela ordem constitucional, e deve ser esperada pela sociedade?
·         Quanto custa proteger para assegurar um nível que seja admitido como essencial?
Contextualizando-os com o tema desta segunda aula, podemos enumerar as seguintes: Qual é e como pode ser visualizada a relevância da atividade financeira do Estado? Qual é a utilidade do estudo do conjunto de conceitos e estruturas que serão expostas ao longo do ano?
Pensem no dia-a-dia de cada um, no cotidiano. Nas liberdades, no acesso à serviços públicos e em atividades das mais corriqueiras como manter limpos os espaços públicos, tomar decisões sobre o uso racional da água, não desperdiçando a energia elétrica. Tudo isso somente tem condições de chegar ao nosso uso a partir de iniciativas do Estado.
Não há direitos fundamentais gratuitos, sem custos. Quando o Estado prioriza a transformação de realidades existenciais dos mais pobres, e menos favorecidos, transferindo-lhes renda e qualidade de vida, tributando menos ou destinando de forma reforçada, ações assistenciais e serviços, deriva estas ações de fontes de recursos, que têm que ter uma fonte.
Geralmente são impostos, pagos primeiro com fundamento em um princípio de solidariedade, e contemporaneamente, a partir da necessidade de se concretizar um padrão mínimo, para todos, de qualidade de vida.
O mesmo ocorre quando vias públicas precárias produzem acidentes que não produzem apenas prejuízos privados aos usuários pela elevação das despesas com frete de cargas, manutenção dos veículos ou reparação dos danos materiais. O excesso destas despesas priva os particulares da possibilidade de realizar outras escolhas sobre um projeto de desenvolvimento digno de sua vida, destinando seus recursos para a satisfação de outras possibilidades de bem-estar e de felicidade. Por outro lado, a falha na manutenção das estradas gera conseqüências igualmente nocivas para uma universalidade de interessados porque acidentes podem gerar contaminação de solos e recursos hídricos pelo óleo e pelos combustíveis descartados. Estes eventos geram a elevação de despesa pública para a reparação dos danos ambientais, para a descontaminação dos recursos hídricos, para a correção de solos, recuperação da biodiversidade, e para proporcionar a reconstituição das condições essenciais para o desenvolvimento de projetos dignos de vida no espaço afetado. Tudo isto gera despesas, que para além de afetar interesses econômicos privados e realidades individuais, também alcança toda a coletividade, que é destinatária dos recursos públicos. A escassez destes exige da ação pública, um compromisso severo com a responsabilidade e a racionalidade na relação entre a destinação e os efeitos dessas escolhas. O uso irracional pode propor uma despesa que atenda a um interesse público, mas se para o seu atendimento a despesa se revele ineficiente, excessiva e desproporcional (se poderia ser eliminada ou mesmo mitigada se escolhas melhores fossem realizadas, ou se a ação estatal fosse oportuna), o interesse público já estará sendo lesado, porque poderia ser melhor atendido, se com o mesmo conjunto de recursos, uma realidade de demandas mais extensa pudesse ser alcançada pela decisão.
Duas expressões são priorizadas aqui: responsabilidade e informação. Melhores decisões são decisões que terão como conseqüência, um uso mais racional dos poucos recursos que estão à disposição do Estado para concretizar um conjunto indeterminado de deveres, tarefas e de necessidades, que terão de ser escolhidas. Prioridades terão de ser definidas. Lixo demanda despesa pública para sua remoção. Caso contrário, demandará despesa pública em serviços de saúde. Menos resíduos resulta em reserva de recursos para outras finalidades mais relevantes e necessárias no momento.

3. Objeto, conceitos e definições do Direito financeiro

Direito financeiro e Ciências das finanças: a Ciência das finanças trata de atividade fiscal, que se restringe à captação de recursos para o custeio de todas as atividades estatais. O Direito financeiro trata do conjunto de relações vinculadas à atividade financeira do Estado, onde a atividade fiscal é um de seus componentes, na medida em que responde a pergunta de como as necessidades públicas são custeadas. Também deverá responder a de quem obtém, e quais são as necessidades que devem ser custeadas pelo Estado, além das demais relações de aplicação, execução e controle da relação receita, despesa e planejamento.
Atividade financeira, que constitui o objeto do Direito financeiro, compreende arrecadação de receita, gestão e realização do gasto, a fim de atender necessidades públicasm que não se confundem com prioridades públicas. Aquelas são definidas pela Constituição. As últimas são escolhidas pelo chefe do Poder Executivo ao encaminhar a mensagem de lei orçamentária.
Em sua dimensão objetiva, o Direito financeiro é um complexo de princípios e normas de organização da atividade financeira do Estado, que por sua vez, representa o conjunto de atividades estatais e dos entes criados pelo Estado, para o fim de se obter receita e realizar despesas no cumprimento de suas tarefas essenciais. Estas representam, em última análise, a proteção e a concretização de direitos fundamentais, através das várias formas de atuações possíveis, por iniciativa do Estado ou por terceiros que executam algumas das funções estatais.
Não se trata de Direito tributário porque este regula um aspecto específico da atividade financeira, que é a obrigação de entregar dinheiro que formará o patrimônio do Estado. Esta é só uma parte do conjunto de receitas integradas e relacionadas à atividade financeira do Estado.

4. A capacidade legislativa para dispor sobre matéria financeira.

A Constituição brasileira propõe um modelo de concorrência legislativa entre a União, Estados-membros e Distrito federal (artigo 24, inciso I, c/c §§ 2º, 3º e 4º, da CRFB), orgnaizado da seguinte forma:
a) União: normas-gerais;
b) Estados-membros e Distrito federal: complementação e suplementação. A primeira resulta da especificação e das condições de aplicação de norma geral pré-existente. A segunda, de inovação primária da ordem jurídica diante da ausência de normas gerais produzidas pela União. Neste caso, o exercício é pleno pelos Estados, e as normas resultantes desta atividade perderão eficácia na superveniência da atividade legislativa da União.
c) Municípios não possuem competência para legislar em matéria financeira.

5. As necessidades e as prioridades públicas.

Necessidades X Prioridades: se é simples concluir que a necessidade de residir em um imóvel de 1.000 metros quadrados não pode ser definida como prioridade (que define a causa que justifica uma ação pública universal e isonômica), é um pouco mais complexo propor que o acesso ao ensino superior é necessário e também seria uma prioridade. A questão se impõe para resolução sob o ângulo de um mínimo existencial, que somente pode ser obtido por meio de deveres de proteção vinculados a um nível essencial de prestações. O Estado possui o dever de proteger direitos fundamentais, e a este dever se encontra vinculado, mas a intensidade de seu exercício não se encontra definida ao ponto de garantir um direito individual a uma vaga nas instituições públicas de ensino superior, a todos os cidadãos, ou ainda, o direito a uma residência a todos os membros da coletividade.
Façamos uma reflexão sobre o problema. Não seria difícil admitir que existe um direito fundamental à saúde, e um direito fundamental a níveis adequados de desenvolvimento cultural, ambos atribuídos de modo universal, e decorrentes de deveres atribuídos ao Estado pro meio da Constituição e de instrumentos internacionais de direitos humanos. Portanto, há deveres estatais de proteção que requerem a ação pública visando viabilizar uma existência digna de todos, concretizando realidades qeu possam favorecê-la, aqui limitadas à saúde e à educação. Mas será que dessa realidade de deveres estatais se poderia justificar um direito atribuído coletivamente aos moradores de um bairro, à construção de uma creche? O que justifica a construção da creche naquele bairro e não em outro bairro, já que todos possuem tal direito? Por que priorizar aqueles moradores e não estes? O mesmo ocorre em relação ao direito à saúde. Por que construir um hospital neste município e não em outro? Por que priorizar neste momento, ações que visem melhorar a qualidade de vida de populações vulnerávies em detrimento de portadores de necessidades especiais? Porque antecipar decisões de proteção em benefício desta e não daquela comunidade ou conjunto de interessados?
Um dever de proteger um determinado direito fundamental decorre da ordem jurídica (Constituição, instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos e da intervenção legislativa) e atende a prioridades. Esse dever que decorre da ordem jurídica condiciona a JUSTIFICATIVA da ação pública (Por que proteger?).
A DISPONIBILIDADE econômica e financeira justifica a INTENSIDADE da ação.
Um dos problemas de maior interesse ao Direito Público e para uma teoria dos direitos fundamentais contemporâea surge quando se requer a resolução da seguinte questão: há aqui um direito fundamental?
A tensão entre necessidades e prioridades no âmbito de um processo de decisão que interessa a proteção de direitos fundamentais é fortemente CONDICIONADA pela valoração de que conteúdo pode ser exposto por um conceito de dignidade de vida.
Quando o Estado falha ao não proporcionar a possibilidade de se desenvolver um projeto digno de vida pode surgir um dever de proteger um direito fundamental. Aqui se remete à discussão sobre um imperativo de proteção, que nos remete a uma reflexão posterior, sobre QUEM deve proteger os direitos fundamentais. É uma decisão EXCLUSIVA do Poder Executivo, quando escolhe prioridades no âmbito de um orçamento? Do Poder legislativo, quando define direitos e a condição de seu exercício? Ou também cabe ao Poder Judiciário zelar pela proteção quando as demais funções falham (imperativo de proteção)?
Podemos expor vários graus de indignidade:
a) Um idoso que vende sorvetes no centro da cidade sem feriados ou descanso nos fins de semana;
b) A deficiência no atendimento bancário, nos serviços de saúde e aos usuários do serviço de transporte coletivo;
c) O lançamento de anões por circo francês.
É possível reconhecer em todos os exemplos, deveres de proteção do Estado, e falhas na execução destes deveres. No primeiro, reconhece-se falhas na proteção de um direito à assistência e previdência. No segundo, serviços públicos ineficientes violam o direito a uma boa administração, e no terceiro, um grave conflito entre direitos fundamentais (liberdades econômicas, liberdade contratual, e direito à vida digna) que suscita, inclusive, a necessidade de se conceber um dever de proteção contra si mesmo. O Estado possui um dever geral de proteger direitos fundamentais, todos eles, e na medida que se permita viabilizar o acesso universal a níveis essencias de prestação, e esse dever também alcança um dever de proteção contra si mesmo.
Temos aqui a exposição clara da linha que distingue as necessidades, as necessidades que precisam ser concretizadas pela ação do Estado (as públicas, que são definidas e identificadas por deveres estatais de proteção) e as prioridades, estas analisadas adiante. Uma necessidade precisa ser atendida e protegida pelo Estado se decorrente de um dever de proteção, cuja fonte, por sua vez, é a ordem jurídica (doméstica ou convencional), mas nem todas as necessidades públicas que suscitem um dever de proteger, produzirão um dever de igual proteção, ao menos como se concebe superficialmente um imperativo de isonomia.
O Estado só está obrigado àquelas prestações que reflitam o resultado de suas capacidades na transformação universal de realidades existenciais, proporciondo-lhes a partir dessas condições infra-estruturais e da composição de uma série de realidades (social, econômica e cultural), a possibilidade de se definir, no âmbito destas condições e deste contexto, um projeto digno de vida. Obriga-se, portanto, a proporcionar condições essenciais ao desenvolvimento da vida, sob o ângulo da universalidade. Diante da escassez de recursos, e da necessidade de proteção universal, o aperfeiçoamento da proteção normativa sempre implica um juízo de elevação das despesas, e assim, enfatiza a necessidade de que a extensão de tal dever de proteção esteja condicionado por uma referência de nível mínimo de prestações. Estas são o instrumento que viabiliza um mínimo existencial, sendo este o objetivo de Estado. O aperfeiçoamento da proteção pela definição de novos direitos ou benefícios existenciais sempre refletirá consequências no plano financeiro, e sempre exigirá um juízo de decisão sobre prioridades, que serão definidas a partir das necessidades. Todo direito fundamental deve ser protegido (dever de proteção), mas nem sempre o serão da mesma forma (a intensidade da proteção requer um juizo sobre prioridades públicas).
O SE e QUANDO proteger nos remete à definição de direitos fundamentais, porque são expostos os DEVERES DE PROTEÇÃO. As questões sobre se é devido proteger e quando se deve proteger são resolvidas pelo reconhecimento de um dever de proteger que tenha sido definido pela ordem jurídica.
O COMO proteger vincula-se a definição das PRIORIDADES PÚBLICAS e define O QUE proteger, remetendo sua resolução a uma decisão sobre alternativas expostas ao juízo de disponibilidade financeira do Executivo.
Para ilustrar a racionalidade e a eficiência de uma escolha pública, tomemos como exemplo a decisão sobre o modelo de transporte público ideal para atender ao interesse coletivo em uma perspectiva de futuro. Em notícia recente publicada em periódico da capital, o gestor responsável por tais ações foi claro ao consignar que já foi realizado empréstimo para a contratação de BRT. Entretanto até este momento sequer houve um estudo técnico, ou uma decisão que pudesse ter exposto esta decisão como o resultado de escolha entre as alternativas disponíveis, e por meio da consideração e ponderação entre as vantagens e desvantagens de cada opção, visando indicar qual delas permitiria satisfazer com mais eficiência o interesse público.

5.1. As necessidades públicas, as prioridades públicas e a atividade financeira do Estado.

§     O problema dos custos dos direitos, dos serviços e das estruturas que para existirem, dependem de recursos, e envolvem despesas: qual é o objetivo e o destinatário a ser atingido por este processo? A coletividade, e a garantia da dignidade da pessoa humana em um Estado social e democrático de Direito.
§     O problema do estabelecimento das prioridades e das necessidades: que tipo de necessidades? Quem estabelece as prioridades? O que deve ser o critério para essas prioridades?
É o próprio Estado quem estabelece as necessidades que deverão ser consideradas como públicas, fixando, portanto, as prioridades que deverão ser atendidas pela atividade financeira.
Sob essa perspectiva, necessidades públicas podem ser compreendidas como prestações públicas a que o Estado está obrigado, através de suas funções (Judiciária, legislativa, e executiva), tendo como fonte primária a ordem constitucional ou a ordem jurídica em geral.
Em primeiro lugar é a função executiva, mas não se restringe a ela. É a ordem constitucional que define as necessidades públicas, o Executivo quem define as prioridades, e o legislativo quem as concretiza, através das leis orçamentárias, e o Judiciário quem as implementa ou corrige as prioridades pré-definidas pelo Executivo, em hipóteses excepcionais.
No plano do Executivo e do Legislativo, as prestações públicas são em geral aquelas relacionadas a serviços públicos, e sua execução é compartilhada entre União, Estados-membros e municípios. Cite-se, por exemplo aquelas atividades enumeradas no artigo 21, da CRFB de 1988.
Veja-se, por exemplo, que o texto cuida de:
Art. 21. Compete à União:
I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais;
II - declarar a guerra e celebrar a paz;
III - assegurar a defesa nacional;
IV - permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente;
V - decretar o estado de sítio, o estado de defesa e a intervenção federal;
VI - autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico;
VII - emitir moeda;
VIII - administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada;
IX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;
X - manter o serviço postal e o correio aéreo nacional;
XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95)
XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:
a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95:)
b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;
c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;
d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;
e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;
f) os portos marítimos, fluviais e lacustres;
XIII - organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios;
XIV - organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
XV - organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional;
XVI - exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão;
XVII - conceder anistia;
XVIII - planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações;
XIX - instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso;
XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;
XXI - estabelecer princípios e diretrizes para o sistema nacional de viação;
XXII - executar os serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:
a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional;
b) sob regime de permissão, são autorizadas a comercialização e a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006)
c) sob regime de permissão, são autorizadas a produção, comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006)
d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006)
XXIV - organizar, manter e executar a inspeção do trabalho;
XXV - estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa.”

Quanto aos Estados-membros e ao Distrito federal temos que:

“Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
§ 1º - São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição.
§ 2º - Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação.”

Por fim, em relação aos municípios:

“Art. 30. Compete aos Municípios:
[...]
V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.”
A técnica de identificação das necessidades públicas na Constituição, e por conseqüência, de identificação daquelas atividades que são consideradas como serviços públicos, a serem prestados no interesse da coletividade, deriva da identificação de um dever. Sempre que for possível identificar que o texto constitucional [ou a própria ordem jurífica em geral] atribuiu deveres de atuar em determinados domínios, à União, aos Estados-membros e aos municípios, estes entes estão vinculados a prestar tais atividades.
A outra técnica está relacionada à possibilidade da associação das atividades, àquelas de que cuida o artigo 175, caput, da CRFB:

“Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

Os deveres de prestar serviço público surgem de competências, e estas são definidas pela Constituição, mas também podem sê-lo por leis. Todas essas atividades que são impositivas para prestação pelo Estado, e que se destinam atender a coletividade, interessam ao exercício da atividade financeira estatal. Isso não quer dizer, entretanto, que pelo fato de serem serviços públicos, só podem ser Executadas pelo Estado. São, quando executadas pelo Estado, custeadas por recursos públicos, mas podem ser executadas pelos particulares. Ocorre que o fato de não ser executado pelo poder público não desnatura a natureza pública da atividade, pois a titularidade continua sendo do Estado. Só se transfere sua execução, que continua a se destinar ao atendimento da coletividade.
Embora o principal conjunto de necessidades públicas esteja concentrado entre aquelas caracterizadas como serviços públicos, pelo texto do artigo 175, da CRFB de 1988, o Estado também atende outras necessidades.
São elas:

a)      regulação da atividade econômica (artigo 174, caput);

b) intervenção no domínio econômico (artigos 173, e 177): o Estado participa diretamente do processo produtivo, que só pode acontecer quando indispensável à segurança nacional ou ao relevante interesse coletivo. E este deve ser definido por lei. Trata-se de exceção porque a regra definida pela Constituição econômica brasileira baseia-se no princípio da livre iniciativa, ou da liberdade de iniciativa econômica (artigo 170, caput) que representa o quê? Que particulares têm preferência na atuação no domínio econômico, já que a ordem econômica ainda é a capitalista, na qual o processo produtivo e as relações têm origem na iniciativa de particulares, e não na iniciativa do Estado, assim como ocorre com a apropriação dos bens e meios de produção. São relações vinculadas à atuação dos particulares, e não do Estado. Esta é acessória.
Como afirma o professor Régis Fernandes de Oliveira (2006, p. 42), o Estado não pode explorar diretamente e não pode ingressar livremente no mercado para produzir riquezas, pois não é essa sua tarefa constitucional.
Desse modo, só pode intervir e ingressar diretamente no processo produtivo se e nas condições definidas por lei, atendido o interesse da segurança nacional e relevante interesse coletivo. A ordem econômica é livre para os particulares, mas não é livre para o Estado, que só atua exercendo funções de controle, fiscalização e planejamento (artigo 174), sendo este indicativo para o setor privado e vinculante para as funções públicas. A vinculação resulta no instrumento orçamento, estando ali a planificação das decisões políticas, que se converterão em receita (recursos de entrada permanente no patrimônio público) e despesas (gastos), sempre em função de necessidades e prioridades fixadas pelo Poder Executivo.

b)      exercício do poder de polícia;

Portanto, de competências, decorrem deveres, resultando, por sua vez, em prestações obrigatórias ao Estado. O conjunto, a extensão e a natureza dessas prestações são definidos pela Constituição.
Nesse sentido, vale ressaltar que a interpretação vem sendo flexibilizada no interesse da valorização do princípio da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República, fixado logo no artigo 1º, inciso III, da CRFB de 1988:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana;” (destacou-se).

O indivíduo no Direito financeiro deve ser compreendido como o centro da atividade estatal, e não como sujeito obrigado por sua atuação fiscal, e muito menos, como objeto do exercício de prerrogativas do Poder Público, de arrecadar receita, e principalmente a tributária. Cabe ao Estado proteger e assegurar o livre desenvolvimento da personalidade humana e níveis dignos de vida, e não destruí-los, subtraindo suas capacidades e potencialidades, de desenvolver suas liberdades civis, econômicas, sociais e culturais.
A atividade financeira do Estado só pode ter como finalidade a proteção de necessidades públicas, convertidas em prioridades após as decisões e escolhas que são realizadas no processo de aprovação e deliberação sobre a lei orçamentária [aspecots que serão analisados em aula específica]. Recursos públicos só podem ter esta destinação.
Surgem aqui, hipóteses muito prováveis de conflitos entre necessidades públicas, entre direitos fundamentais ou princípios constitucionais (direito à vida digna, dever de prestar determinado serviço em caráter universal e a necessidade de atender outras necessidades igualmente relevantes, do interesse de toda a coletividade, por exemplo, sendo estes, conflitos bastante comuns quando se trabalha com a prestação de serviços públicos de saúde, e em menor medida, de educação ou outras necessidades existenciais, como o atendimento básico a crianças, creches, etc...).
Diante do princípio da separação das funções do poder, é o próprio Estado, e de forma mais específica, o Poder Executivo, quem define as prioridades. Mas já não definem de forma unilateral? Por quê? Porque há um instrumento, o orçamento, que programa e ordena todo o conjunto de despesas que será realizada em um período de um ano pelo Estado, destinado a atender esse conjunto de necessidades, e no qual, em tese, deve haver a possibilidade de intervenção de interesses e necessidades da coletividade.
As audiências convocadas pela Assembléia Legislativa teriam que cumprir, em tese, esse objetivo, assim como o próprio Executivo pode fazer o uso de semelhante instrumento;
Um segundo fundamento para limitar essa pretensa unilateralidade das escolhas tem sua fonte no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Exemplo concreto: construção de creches, hospitais, atendimento de determinadas doenças pelas estruturas públicas de saúde, presídios, sistemas de esgotamento sanitário, pavimentação de ruas em benefício da saúde dos moradores de determinado bairro. Sempre que um mínimo não for garantido, e essa deficiência for constatada pela função judicial, estaremos diante de uma exceção para aquele poder do Executivo, para definir as prioridades.
Todos os tipos de necessidades estão contemplados? Ou ainda, todos os tipos de necessidades devem ser atingidos? A resposta teria de ser positiva apenas se fosse considerado como objeto dos deveres estatais, concretizar os níveis essenciais de prestações dos direitos fundamentais como os que forem enumerados anteriormente.


6. Indicações bibliográficas

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TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.