terça-feira, 13 de abril de 2010

AULA 1 --> ATUALIZADA!!! <--

AULA 1

Prof. Dr. Patryck de Araújo Ayala


Tema: O Estado de Direito, direitos fundamentais e os custos dos direitos.


Problema proposto: O que significa dignidade de vida? A multiplicidade de referências sob o plano subjetivo e a necessidade de se determinar referências objetivas.

Qual é a tarefa do Estado nas sociedades contemporâneas e como é possível que assegure o bem-estar neste modelo de sociedade?

Utilizar o exemplo do bem-estar sob o plano da igualdade de acesso aos benefícios e vantagens existenciais, tendo como contexto o do lixão. Escolhas estatais e comportamentos particulares produzem conseqüências sob o plano existencial. Melhoria na qualidade de vida, ou prejuízos para o bem-estar podem resultar dessas escolhas, e essas escolhas podem representar conseqüências úteis, deficientes ou insuficientes sob o plano do exercício da atividade financeira, que é uma atividade pública. Bem-estar é uma referência variável e só pode ser definida contextualmente, historicamente e culturalmente. O desafio é determinar qual é o padrão de bem-estar a que o Estado se encontra vinculado, e qual é o grau de intervenção que terá de ser justificado para o fim de acesso aos recursos necessários, sob as liberdades econômicas? Aqui cabe utilizar o exemplo do lixão no município de Cuiabá, para o fim de especificar a insuficiência de uma leitura de sucessão geracional para os direitos, e para enfatizar a interdependência entre todos para o fim de justificar a ação estatal.


Situando o problema: como já foi dito por ocasião da apresentação de nossa disciplina, foi realizada uma opção de abordagem para o nosso programa. Essa opção exige que, antes de acessarmos ao conteúdo proposto em um programa básico de direito financeiro, permitir que todos compreendam e reflitam sobre a importância e a influência do exercício da atividade financeira do Estado no dia-a-dia de cada um, considerando que se trata aqui de uma atividade que, apesar de pública, requer a participação da coletividade, nossa participação na maior parte das decisões, para assegurar que estas decisões possam resultar em conseqüências úteis em nossa vida. Estamos tratando e estaremos tratando em grande parte de nossas aulas, de três valores de proeminência na ordem jurídica das sociedades contemporâneas: igualdade, dignidade e qualidade de vida. O problema exposto para nossa análise nesta aula é: faz parte do projeto existencial de cada um, ou ainda, este projeto tem seu termo final na simples garantia de acesso a alimentos, de sobrevivência física, ou à segurança alimentar? É isto que se deve entender por qualidade de vida e vida digna em uma sociedade contemporânea? Este é o objetivo e a tarefa atribuída ao Estado, que deve ser concretizada através do exercício de atividade financeira, em uma sociedade contemporânea?


A ordem jurídica de uma sociedade de riscos e de escassez de recursos

Uma primeira abordagem de aproximação sobre a compreensão de como se organiza a atividade financeira do Estado não pode desconsiderar a necessidade de uma exposição sobre a progressiva acumulação de tarefas atribuídas às funções estatais, sobre como estas tarefas se relacionam com os objetivos expostos por cada modelo de ordem jurídica [enfatizando-se aqui a noção de ordem jurídica, que será contraposta àquela decorrente de uma realidade pós-revolução francesa, e que caracteriza uma abordagem moderna sobre o fenômeno jurídico] e sobretudo, de organização de modelos de Estado, e da própria elaboração do significado do fenômeno jurídico, do sentido de lei, e de Direito, situados no contexto de cada uma dessas realidades.

Para tanto, partindo-se de uma referência que geralmente situa as realidades históricas [ocidentais] de um Estado policial ou fiscal, como representações e manifestações de um Estado medieval, é possível descrevê-la, conforme explica Paolo Grossi, como uma realidade na qual o fenômeno jurídico, identificado em uma referência à lex, já consistia em uma idéia presente em Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica. Nesta, poder-se-ia identificar uma elaboração particular para a compreensão do que fosse uma ordem jurídica. A ordem jurídica de um Estado medieval expressava-se como uma manifestação de integridade, enfatizando o fenômeno jurídico e o Direito como ordenamento, e uma realidade [ou dimensão] social do poder, a qual expunha:

a) um pluralismo jurídico;

b) uma dimensão social do Direito;

c) o conceito de justiça e de razoabilidade como conteúdos essenciais do fenômeno jurídico, expondo, portanto, uma dimensão substantiva para o mesmo;

Em uma ordem jurídica na qual o Direito se expunha como uma manifestação de integridade, seria possível admitir como razoável, portanto, que o fenômeno jurídico pudesse se expressar, fundamentalmente, em uma relação de identidade, ou ainda, como o resultado necessário, e como a conseqüência de uma determinada realidade social, histórica e complexa, sendo possível identificar que:

a) privilegiava uma dimensão objetiva e não subjetiva do fenômeno da juridicidade, onde o sujeito responsável pela produção da norma é menos importante do que o conteúdo da norma;

b) enfatizava uma dimensão ôntica do Direito (conhecimento X crença) e não volitiva (ato de vontade imperativo), e que;

c) procurava preservar, em conjunto com uma idéia de direito como ordenamento, a complexidade da realidade das coisas, de forma a colocar ordem e harmonizar a complexidade, não restringindo ou simplificando essa realidade. Tal pretensão de simplificação e aumento da possibilidade de redução da complexidade é, ao contrário, própria da influência iluminista e que se fez reproduzir, de outra forma, na elaboração da visão potestativa do Direito, que se funda na noção da lei como ato de autoridade, que representa a manifestação de poder político (unipessoal e soberano) ou vinculado à uma autoridade circunstancial (parlamentos).

Por seu turno, a concepção moderna da lei, fiel à concepção proposta para a referência loi, caracteriza-se como o oposto do arquétipo medieval e se encontra expressa através de uma dimensão potestativa do direito. A positividade do Direito é reduzida e simplificada á concepção normativa e formal de lei, baseada na apropriação estatal do fenômeno jurídico, na rejeição à complexidade, à historicidade e à socialidade do fenômeno jurídico, e sobretudo, no privilégio de uma dimensão volitiva, potestativa e subjetiva da lei, onde esta se exprime como ato de vontade imperativa, fonte exclusiva da juridiciadade, que se consolidaria através das Codificações, cujos principais atributos reproduziriam a à pretensão de unidade (fictícia), completude e justamente a exclusividade.

Esses atributos produzem como conseqüência relevante para a cultura jurídica, a simplificação cultural do fenômeno jurídico e da própria positividade. Traços que evidenciam tais conseqüências podem ser reconhecidos pontualmente no desenvolvimento da teoria das fontes do direito, que ainda prioriza a lei (sob uma postura normológica) como fonte de juridicidade e a atividade de interpretação/aplicação da lei como momento distinto e estranho à positividade. Esta se adstringe ao momento da produção da norma e a interpretação, nesse sentido, seria tão somente a atividade de se reconduzir àquele momento de revelação da vontade imperativa. A concepção moderna de lei privilegia essa simplificação porque compõe uma unidade e uma realidade artificiais, expressas em regras e que deveriam corresponder a essa realidade, reificando-a no tempo e estatificando-a àquele exato momento genético.

Tal como ponderado por Montaigne, a lei bastaria por si só para justificar-se, independente de um conteúdo pré-determinado. Em detrimento de uma postura ôntica do direito (própria da lex de tradição medieval), a concepção moderna de lei refuta a dependência dos processos de justificação em relação a conteúdos substantivos. A justiça como lei do período medieval é substituída pela concepção que identifica a lei à justiça, e a norma jurídica estatal como produto próprio de um processo legislativo. Todos esses fatores permitem delinear um quadro da cultura jurídica contemporânea, descrito por Grossi como um processo de mitificação do Direito, onde esse passa a se manifestar como um mito.

A atividade de conhecimento sobre a complexidade da realidade é preterida em favor da crença em pretensas verdades axiomáticas encerradas em um texto, que representa um momento da produção e que se superpõe à autêntica dimensão sapiencial do direito. Falar-se em ordem, e em uma ordem jurídica, impõe a remissão à necessidade de harmonizar a realidade e compor a complexidade.

Até o momento, tratou-se de apresentar realidades de duas ordens jurídicas que expressariam em melhores condições, um modelo de Estado vinculado a um conjunto bastante específico de necessidades e demandas, e de tarefas públicas. Estas tarefas deveriam ser executadas por iniciativa do próprio Estado, destacando-se as ações de segurança interna e externa, e de proteção à propriedade privada.

Semelhante representação exporia adequadamente, [parece-nos], um modelo de Estado fiscal e de Estado policial. A questão suscitada nesta ocasião é: os desafios postos pelas sociedades contemporâneas poderiam ser enfrentados segundo um modelo de ordem jurídica vinculado à noção de loi, ou ainda, de um modelo de Estado fiscal ou liberal? Estas representações são suficientes para nos apresentar respostas adequadas no plano da proteção de direitos, de benefícios à coletividade, de assegurar qualidade de vida? Se não são, qual é a razão de não o serem?

Uma possível resposta decorre da admissão de que vivemos e convivemos neste momento, com os efeitos de processos tecnológicos, produtivos e decisórios, social e ambientalmente nocivos, os quais constituem a manifestação de uma sociedade que se faz apresentar na forma de uma sociedade de riscos globais. Tal circunstância expõe à organização do Estado, funções e tarefas não apenas adicionais, senão diferenciadas.

O contexto social, político e ambiental das sociedades contemporâneas impõe ao Estado de direito tarefas vinculadas à proteção diante de riscos, riscos que não são efeitos de desastres, catástrofes da natureza, senão o resultado de comportamentos humanos, de modelos de exploração econômica de tais recursos.

Note-se que se nem todos estão expostos no plano nacional, aos mesmos riscos, ou à mesma medida de riscos. No plano externo, se esta afirmação é verdadeira, deve ser tratada com alguns cuidados.

Os relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) apontaram que as fontes de emissões de Gases Efeito Estufa (GEE) decorrem não só de atividade industrial, mas também de atividades agropecuárias, e de outras formas de degradação da qualidade ambiental, estas situadas em países em desenvolvimento (Norte).

Nesse cenário, perde o sentido expressar uma noção de iniqüidade ambiental que possa ser expressa nesses estreitos termos. Se realmente não é possível conceber que todos os governos estão expostos aos mesmos riscos e a mesma medida de riscos, de outro modo, esta não pode ser simplificada desta forma.

Há, de outro modo, divergências sobre se os próprios prognósticos do IPCC seriam credíveis. Aponta-se para um prognóstico de elevação de temperaturas, da aceleração de processos de desertificação em florestas, de savanas na Amazônia, de elevação do nível dos mares, e de modificação do regime hídrico e pluviométrico em regiões inóspitas e áridas, envolvendo perdas e benefícios em uma escala global.

Um cenário de dúvidas e controvérsias também caracteriza a ciência das mudanças climáticas e influencia a própria definição da realidade dos riscos, contrapondo, de um lado [e estamos tratando aqui das discussões realizadas no plano do IPCC], os cientistas do painel de mudanças climáticas do IPCC, e de outro, cientistas tidos por céticos, como Bjorn Lomborg.

Aqui fica claro que conflitos existem no plano científico. A controvérsia se estabelece entre cientistas, e se reproduz no plano da regulação, no de como a proteção é proposta por um Estado, através de atos normativos, de atividade administrativa e por fim, da atuação judicial.

É aqui que se insere a configuração contemporânea de um modelo diferenciado de organização estatal, o de um Estado de direito, que além de social, também é ambiental, Estado que tem como tarefa, a de assegurar proteção diante dos efeitos de decisões civilizatórias, suscitando limitações e restrições sobre as liberdades econômicas, e para a capacidade de disposição e de definir os caminhos de desenvolvimento da personalidade humana, que passam não só pela exploração arbitrária e irracional de recursos naturais, segundo suas próprias necessidades e utilidades, senão pela necessidade de se assegurar proteção da capacidade de regeneração e de manutenção daqueles, e da qualidade de vida que decorra dessa proteção. Esse é o objetivo fixado para o Estado na condição de tarefa, que deve ser prestada perante cada um de nós, na coletividade. Tem-se aqui uma equação: tarefas e prestações, sendo esta a equação cuja complexidade está exposta neste momento à atividade financeira do Estado, e que se mostra importante para a análise no programa desta disciplina.

Para que possamos situar o objeto de nosso trabalho nesta aula, é conveniente ressaltar que o início de nosso programa depende de que, primeiro, seja enfrentada a seguinte questão: se estamos tratando da atividade financeira do Estado, a que modelo de Estado fazemos referência? Em que modelo de Estado se insere o conjunto das ações, dos processos, da escolhas, que veremos, estão associadas e decorrem diretamente da atividade financeira desse modelo contemporâneo de Estado?

Apenas a título de exemplo, temos nas sociedades contemporâneas, a emergência da questão de riscos de diversas ordens, entre os quais ganha ênfase neste momento, os ambientais, e mais especificamente, os riscos climáticos.

Nessa ordem de problemas e de seu enfrentamento, como é possível compreender os problemas ambientais para o fim de se obter proteção de direitos fundamentais, assegurar benefícios existenciais, que é o resultado último, conforme constataremos, das ações do Estado, e portanto, da atividade financeira do Estado?

A compreensão de semelhante processo decorre primeiro, de que se possa compreender os problemas ambientais

s sob o plano organizatório, e depois sob o plano normativo.

A equação propõe que a compreensão dos problemas ambientais supõe sua análise a partir da seguinte relação: plano político-organizatório (Estado) → Plano Normativo (j

juridicidade ambiental).

Os problemas ambientais destas sociedades contemproâneas expõem:

  • uma crise ambiental, que propõe uma nova qualidade de ameaças: perigos e riscos;
  • uma realiade de riscos,visíveis, invisíveis, concretos ou abstratos, ou ainda, acessíveis ou inacessíveis ao conhecimento científico disponível. Os últimos (riscos inacessíveis ao conhecimento científico) reproduzem com maior fidelidade duas características essenciais dos novos riscos: a imprevisibilidade e a incontrolabilidade. Esses riscos também propõem ameaças resultantes da acumulação de fontes e causas de poluição e de degradação, consubstanciando o que o professor Canotilho classifica como problemas ambientais de segunda geração (problemas de efeitos acumulados), que mesmo que possam ser previstos, não podem ser controlados ou não são objeto de controle eficiente pelas instituições.


Esse quadro encontra-se associado ao fenômeno de uma irresponsabilidade organizada, pelo qual, mesmo que possam ser previstas as fontes e as causas de degradação e poluição, omissões voluntárias das instituições no sentido de tolerá-las ou de não submetê-las ao controle adequado, oportunizam a proliferação das ameaças, tal como em relação àquelas que sequer podem ser confirmadas pela ciência.

Um exemplo desse cenário pode ser traçado a partir da poluição acumulada no continente asiático (riscos concretos e previsíveis, mas incontroláveis), e a partir do quadro de mudanças climáticas globais (riscos abstratos que apenas recentemente puderam ter uma relação de causalidade com comportamentos humanos demonstrada cientificamente, e que não podem ser controladas adequadamente).

Esse mesmo cenário propõe no plano de relações econômicas globalizadas, interação entre os processos de produção e efeitos desiguais na distribuição dos ônus ambientais. Exemplo: financiamento de complexos industriais em países em desenvolvimento por nações européias ou pelos EUA, concentram a circulação dos benefícios financeiros nas nações de origem, e os ônus ambientais às nações onde estão instalados os complexos industriais. Este cenário descreve efeitos que tendem a se acumular com outras fontes, e que em alguma medida são distribuídos para outras nações que não possuem nenhuma relação, seja com o financiador, seja com o espaço que autorizou a instalação das fábricas e atividades poluentes.

Conclusão: uma sociedade de riscos, e mais recentemente, uma sociedade mundial dos riscos, não é uma sociedade democrática porque não oportuniza igual acesso à qualidade dos recursos naturais.

Que tipo de Estado pode garantir ao mesmo tempo, segurança cívica (segurança civil: proteção à integridade física, patrimônio), e segurança coletiva (acesso a bens, valores e serviços suficientes para uma vida digna)?

Um Estado de Direito em sua perspectiva liberal clássica, que protege bens, pessoas [vida privada e direitos da personalidade] e que objetiva a segurança interna e externa pode proporcionar essa segurança, nesse cenário de transformações?

Como podemos relacionar a sociedade de riscos como um contexto de problemas relevante para o objeto de estudo de nosso programa de disciplina? Os riscos pessoais, os efeitos de desastres naturais, catástrofes, a proteção social, a segurança pessoal, ambiental, patrimonial, todas estas variáveis propõem custos e, portanto, despesas, que remetem ao nosso objeto de análise, o direito financeiro.

Percebam a partir deste conjunto, a relação estabelecida entre as estruturas de organização estatal, suas tarefas e objetivos, e o conteúdo de nosso programa, que envolve, [ressalte-se], fundamentalmente, o problema de como o Estado, pode atingir a realização dessas tarefas e objetivos. De que instrumentos dispõe, que tipo de problemas envolve a realização dessas tarefas. Temos aqui, escolhas que serão realizadas.

Por que realizar algumas escolhas, e não outras? Por que outras escolhas são proibidas? Por que algumas escolhas são impositivas?

Outros aspectos também são importantes e serão enfatizados. O principal deles está na relação que também influencia o estudo de nosso programa, entre escolhas privadas e os custos das ações públicas sobre a realização de tarefas pelo Estado.

A minha escolha entre não utilizar, utilizar racionalmente um veículo automotor, ou utilizar veículos com frequência, além de veículos que consumam combustíveis fósseis e que não exponham índices de economia e consumo aceitáveis, implica em incremento e em contribuir com o aumento das emissões, elevação nos custos paras as ações de descontaminação, custos da atividade produtiva para sua mitigação, além de ações de saúde, suportadas pelo Estado, e em última análise, por todos os membros da coletividade na forma de receitas derivadas, decorrentes do exercício da atividade tributária, pela qual os particulares são destinatários de um dever de colaboração e de solidariedade para com o poder público.

Notem que não temos aqui um ato voluntário de beneficência, senão de um dever a que se encontram sujeitos os particulares e que tem seu fundamento em um princípio de solidariedade, princípio este que constitui a representação dos modelos de Estado social e pós-industriais. Estes deveres têm espaço cada vez mais expressivo na experiência constitucional ocidental, sendo possível identificá-los, na ordem brasileira, naqueles deveres ambientais, familiares, e vinculados à proteção social (trabalho, saúde e previdência). Insere-se aqui, também, um dever de colaboração para o fim de justificar moralmente a ação estatal em matéria tributária. Este tema será resgatado por ocasião da análise das receitas tributárias, objeto de aula específica.

Um exemplo muito marcante deste cenário pode ser associado ao quadro de catástrofes e de desastres civis recentemente noticiados em todos os veículos da mídia nacional. Deslizamentos de solo no Rio de Janeiro, enchentes em São Paulo e no Rio Grande do Sul, e mortes decorrentes desses eventos. Decorre da correta destinação e da ação oportuna dos governos [e isto exige a obtenção e a aplicação de recursos financeiros que têm geralmente a origem em patrimônio privado, sendo este o caso dos tributos em geral], a garantia de que cada um de nós possa dormir com tranqüilidade em nossas residências, livre da ameaça de deslizamentos, transitar com segurança em vias públicas, de doenças endêmicas ou epidêmicas [garantias de mera sobrevivência física, vinculadas às ações de segurança pública, de um sistema público de saúde, e de serviços de saneamento ambiental] ou de desenvolver plenamente nossos potenciais e nossa personalidade, obtendo melhores níveis de vida, com o acesso a serviços públicos de qualidade que proporcionem progressivo avanço em nossa existência física [este é o caso da educação, bem como da assistência, e do trabalho].

Recuperando o que já foi antecipado em nossa apresentação, três questões devem ser examinadas e merecem a nossa reflexão para que possamos compreender o complexo conjunto de relações e conseqüências da organização da atividade financeira do Estado, e de nosso programa.

Primeiro: quem deve assegurar a proteção e a obtenção de benefícios existenciais nas sociedades contemporâneas? Se estamos tratando do Estado, uma segunda questão se impõe: todas as demandas existenciais devem ser asseguradas por um modelo de Estado, e estas demandas são permanentes e invariáveis? São comuns a todas as realidades? Por fim: se a resposta for negativa, a que se encontra obrigado o Estado?

Fazendo o uso de alguns vinculados à proteção do meio ambiente, que é a minha área de investigação, temos que na Constituição brasileira, a tarefa de proteção do meio ambiente não está atribuída com exclusividade ao Estado, senão a um modelo de co-responsabilização, no qual a execução da imposição é compartilhada entre as funções públicas e a sociedade, que colaboram (funções públicas entre si, e estas com os particulares) em nome do objetivo comum de assegurar a qualidade dos recursos naturais.

Por que isto e qual a relevância desta abordagem em Direito financeiro? Se o Estado também tem tarefas, deve ser ressaltado que sua execução implica a geração de despesas, de gastos públicos, cuja fonte é em grande medida, oriunda do patrimônio do particular. Notem, portanto, que o gasto público sempre envolve uma atividade de colaboração entre Estado e sociedade. O Estado é o gestor do patrimônio que tem sua fonte no exercício das liberdades econômicas dos particulares.

Esta abordagem terá sua relevância demonstrada porque permite, a um só tempo, aproximar o seu conteúdo de experiências práticas e da realidade, e permite sua comunicação e interação com outros domínios de crescente influência no direito contemporâneo: as teorias de justificação dos direitos fundamentais e o direito ambiental.

É o que nos remete situações como desabamentos, o aumento da poluição atmosférica, a contaminação dos lençóis freáticos urbanos, dos solos, a elevação das temperaturas médias nos espaços urbanos, entre outras. Todas elas suscitam reflexão que em última análise, vincula-se à construção de referências sobre padrões de vida digna, sobre a capacidade ou não de assegurar o pleno desenvolvimento da personalidade humana nesses espaços, sobre a capacidade de assegurar proteção à autodeterminação da vontade.

Remete-se, portanto, à noção de qualidade de vida, e de quanta qualidade de vida o Estado se obriga oferecer, assegurar ou proteger.

O aumento nos níveis de contaminação do ar, solo, recursos hídricos implica, necessariamente, perda de qualidade de vida em diferentes níveis, sendo a manifestação mais evidente o aumento no número de atendimentos na rede pública de saúde (que representa a elevação da despesa pública). Temos aqui um exemplo que bem ilustra o que se deve entender por responsabilidade, eficiência e moralidade na realização das escolhas sobre como, onde e, principalmente, quando empregar os recursos públicos.

Uma decisão pública sobre os gastos que seja inoportuna, pode representar sua elevação em momento posterior, elevação que poderia ter representado a aplicação em outras necessidades igualmente relevantes. Veja-se, por exemplo, o caso da omissão ou da inércia na realização de ações de combate ao assoreamento das margens de cursos hídricos urbanos, ou nas políticas de habitação urbana para o fim de desocupação de áreas de preservação permanente. Desta omissão pode resultar o desabamento, e efeitos intoleráveis de enchentes que exigirão ações públicas de alocação, assistência e reparação de danos, todas elas suportadas de forma direta por toda a sociedade. Pergunta-se: é razoável, aceitável ou ainda, é legal ou constitucional admitir esta perspectiva de justiça distributiva? A coletividade deve ser responsabilizada (no sentido de lhe ser exigida responder financeriamente pelo custo das ações do gestor público) tão somente pelo fato de ter conferido poderes de representação política a um chefe do Poder Executivo? Esta manifestação da democracia representativa é suficiente para o fim de imunizar o representante de prestar contas de suas decisões? Ou de exercer seus poderes nos limites da representação que lhe foi conferida?

Sobre esse conjunto de problemas deve ser ressaltado que o gestor público, conforme será exposto ao longo do programa da disciplina, aomente possui a capacidade de tomar decisões nos limites da representação que lhe foi conferida, representação qeu tem por objetivo a realização dos objetivos da república.

Excessos não podem ser admitidos e, neste plano, não podem ser suportados pela coletividade. Aqui está a função dos instrumentos de controle na execução orçamentária, e dos tribunais de contas. A representação política não lhe confere a capacidade soberana de realizar escolhas e responsabilizar financeriamente a sociedade independente das finalidades ou objetivos que deva atingir. Nem toda escolha é legítima para o fim de justificar a responsabilização da sociedade. Determinadas escolhas podem ser revistas, corrigidas, invalidadas no contexto de um modelo de controle recíproco entre as funções políticas.

Aqui também será possível perceber que o desenvolvimento teórico, filosófico e moral não constitui retórica, senão o fundamento de escolhas que são realizadas no âmbito de comunidades e de consensos sobre como deve ser guiada e desenvolvida uma vida decente em uma determinada organização social e sob um determinado modelo de organização política e econômica. Estas escolhas são realizadas no âmbito de Constituições e são, fundamentalmente, escolhas morais.

Outro exemplo, que também representa uma realidade cada vez mais próxima de nosso cotidiano, pode ser vinculado à análise do fenômeno das mudanças climáticas globais. Elas não decorrem necessariamente de comportamentos ou riscos de grandes proporções, ou ainda, de atividades de elevada capacidade de intervenção sobre os recursos naturais e os respectivos espaços. Um simples hábito como o de lavar diariamente as roupas, fazendo o uso de detergentes, pode contribuir de forma mais ou menos severa para a contaminação dos recursos hídricos e mortandade da fauna aquática com a alteração dos processos físicos e biológicos daquele ecossistema. Isto implica necessariamente em comprometimento e a necessidade de modificação das escolhas públicas. Se estas poderiam, inicialmente, ser realizadas a partir de um amplo espectro de opções, sujeitas à melhor conformação para o atendimento de um determinado interesse público, agora têm de se limitar ao atendimento daquela necessidade que surge como prioritária, porque envolve a tarefa de redução e mitigação dos riscos à saúde humana.

Decisões e comportamentos privados podem vincular em mair ou menor medida as escolhas estatais e o modo de atuação de cada uma de suas funções. Na hipótese contrária, em que não sejam destinados recursos para despoluição e a redução dos riscos ao meio ambiente e à saúde humana, terão de ser realizados necessariamente para o atendimento do serviço público de saúde, que reproduzirá, provavelmente, cenário que exigirá o aumento na demanda por prestações públicas.

Em todo caso, escolhas irresponsáveis realizadas sob a perspectiva privada não representam em nenhuma hipótese, um bom negócio para a coletividade, que se vê afetada de forma indireta, pelos resultados de atos que não lhes podem ser atribuídos. Estes efeitos decorrem no aumento nos gastos públicos e na afetação excessiva de seu patrimônio, visando atender a essas necessidades e prioridades geradas por iniciativas de poucos. Este cenário reproduz uma realidade de injustiça e de iniqüidade ambiental cada vez mais comum nas sociedades contemporâneas, nas quais os riscos representam efeitos negativos decorrentes da iniciativa de poucos, sobre a esfera existencial de muitos, e que se estende em escalas distantes no tempo.

Desta exposição, resulta clara a necessidade de se reforçar a noção de responsabilidade, que compreende um sentido de cooperação coletiva e de solidariedade no domínio do direito financeiro, relacionando os comportamentos públicos e privados, a ação estatal e o envolvimento de toda a coletividade. Para ilustrar este aspecto, notem, por exemplo, que grande parte das enchentes urbanas decorre do acúmulo de resíduos, e estes resíduos são produzidos por cada um de nós, sendo, portanto, o resultado e a conseqüência de comportamentos que não são estatais, senão privados, particulares. Ocorre que destes comportamentos, decorre maior ou menor comprometimento da ação estatal no sentido de assegurar proteção civil perante os efeitos das enchentes, e do mesmo modo, com as ações destinadas a despoluir os cursos hídricos, manter a qualidade das águas, tratar os resíduos produzidos pela sociedade e reduzir os níveis de contaminação.

Por outro lado, o mesmo cenário também pode ter origem na omissão estatal, ao deixar de fiscalizar ou de assegurar a correta ordenação e o uso dos espaços e do solo urbano, ao deixar de executar obras de saneamento ambiental, desocupação de áreas de risco, recuperação de áreas de preservação permanente para o fim de evitar os riscos civis em períodos de chuvas intensas.

Enchentes contribuem para a contaminação de lençóis freáticos utilizados para o abastecimento e o consumo humano. A ausência de investimentos no tratamento e no saneamento ambiental resultará na provável elevação das despesas públicas com os serviços públicos de saúde, diante da possibilidade da elevação nos números de atendimentos relacionados a um conjunto de doenças infecto-contagiosas.

O mesmo cenário também pode resultar da ausência nos investimentos relacionados ao controle da poluição atmosférica ou nas ações para o fim da diminuição de emissões no setor de transportes urbanos. A ausência de ações públicas de educação ambiental ou mesmo de incentivos, investimentos em pesquisa sobre alternativas tecnológicas para combustíveis fósseis pode resultar em cenário semelhante: a elevação nas despesas relacionadas ao sistema público de saúde, decorrente do aumento no número de casos de doenças respiratórias, ou cânceres, cuja prova científica que relacione tais efeitos à referida causa há muito tempo deixou de estar reservada ao âmbito das conjecturas, razão pela qual, mesmo sob uma lógica de custos-benefícios, seria perfeitamente possível justificar as ações públicas.

Neste ponto, questão de grande relevância ainda pode ser suscitada, mas que não será objeto de aprofundamento em nosso programa: o que justifica a ação pública para a proteção de direitos fundamentais? É demandada a evidência científica conclusiva, prova conclusiva sobre uma relação de causalidade (vide os investimentos em ações ambientais para a redução de determinados riscos) e a demonstração de que os custos da ação serão equivalentes aos benefícios resultantes de tais investimentos? Ou diante de determinados riscos, é suficiente a exposição de evidências, ainda que não conclusivas, mesmo que os benefícios esperados não superem os custos das medidas que terão que ser adotadas?

Em outras palavras: diante dos riscos representados pela exposição continuada ao amianto, ou mesmo, diante dos riscos representados pelo aumento das emissões do setor de transporte, o Estado poderia justificar, ou estaria a autorizado a propor uma determinada ação pública, mesmo que não fosse possível demonstrar cientificamente, e de forma conclusiva, que o aumento do número de casos de doenças respiratórias e de cânceres pudesse ter origem na poluição atmosférica, ou que os casos de asbestose em um determinado município, Estado ou localidade, decorrem da exposição continuada ao amianto?

Sob a perspectiva exposta até o momento, é possível constatar que, quando examinamos o conteúdo vinculado ao direito financeiro, não podemos nos restringir exclusivamente à análise das leis orçamentárias e dos instrumentos destinados a organizar e destinar recursos públicos.

A correta compreensão da disciplina e de seu conteúdo passa, primeiramente, pela compreensão de que estamos lidando aqui, com um conjunto de relações que não envolvem apenas o Estado, conforme costumeiramente costuma ser exposto nas obras de referência.

Temos por objeto um conjunto de relações que envolve necessariamente a análise da dinâmica das relações sociais, de um projeto democrático exposto por uma formação estatal definida por uma Constituição. Um Estado social e democrático de direito, que aponta que seus objetivos não podem ser atingidos senão com a cooperação entre a sociedade e as funções públicas.

Não podemos compreender a disciplina e os temas expostos, seus instrumentos, de forma dissociada desta imagem e deste projeto de ordem social proposto pela Constituição brasileira. As escolhas privadas e os comportamentos sociais produzem conseqüências cada vez mais relevantes no plano coletivo [os efeitos que atingirão todos os membros da coletividade] e no plano estatal. Estas escolhas modificam a forma e a própria definição de como o Estado se comportará perante os problemas e contextos sociais, políticos e econômicos, visando assegurar a realização de suas tarefas.

Através de suas funções, o Estado pode estimular, incentivar ou desestimular comportamentos, seja por ações de comando e controle (proibições e restrições) ou sob políticas públicas que induzam escolhas voluntárias pelos particulares.

A partir do momento em que um comportamento deixa de ser uma mera escolha individual e se torna influente sobre o caminho que toda a coletividade pretende propor para a sua própria existência, teremos conseqüências relevantes para as escolhas que serão realizadas pelo Estado.

Um indivíduo que decida consumir alimentos orgânicos, que faça a separação dos resíduos pouco contribuirá para uma alteração substantiva que seja positiva para a ação pública. Entretanto, no momento em que tais escolhas se integrarem ao ponto de um consenso coletivo expressivo, será visível o efeito no plano das escolhas estatais. Portanto, as conseqüências de comportamentos determinados e de atos de poucos podem se estender de forma coletiva, sendo suportados por toda a coletividade na forma de custos, de deveres de conteúdo econômico.

Podemos citar mais outro exemplo bastante próximo de nosso cotidiano, que pode ser utilizado para a exposição de formas diferenciadas de se visualizar a preponderância de uma discussão vinculada à organização financeira do Estado. Quando o Estado adquire bens que não provém de atividades ambientalmente certificadas, ou que reflitam padrões sustentáveis de uso dos recursos naturais, o principal resultado para a Administração Pública é a apresentação de uma proposta de preços economicamente mais vantajosa, que tende a influenciar uma escolha por esta em detrimento de outras que possam exprimir preços superiores.

Ocorre que esta proposta reflete apenas uma conveniência imediata para a Administração Pública, uma vez que o preço é o resultado final da consideração de custos, que por sua vez são determinados a partir da consideração de um conjunto complexo de variáveis, o qual pode compreender elementos sociais e ambientais. Sob este contexto, um preço pode ser economicamente mais vantajoso para a Administração, mas pode lhe produzir conseqüências indiretas bastante severas, conseqüências sob a dimensão financeira e que, em última análise, produzem efeitos na forma de ônus ou responsabilidades suportadas por toda a coletividade.

Se cabe ao Estado zelar para que as aquisições de bens e serviços sejam realizadas do modo mais econômico quanto seja possível, visando promover o uso racional dos recursos públicos que são limitados, também deve zelar [porque lhe foi atribuído o dever geral de proteção dos direitos fundamentais, decorrendo destes a função de proteção e a tarefa de proteção mencionados] pela proteção da sociedade perante riscos à sua qualidade de vida, ao seu bem-estar, à sua saúde, e pela proteção do meio ambiente, compreendido em suas realidades natural, cultural e social.

Nesse sentido, uma escolha que pode representar a expressão imediata de economicidade, pode resultar de forma indireta, na elevação de custos para a proteção de tais direitos fundamentais.

Em outras palavras, fazendo o uso de um exemplo mais concreto, tem-se que, a aquisição de madeira oriunda de desmatamento ilegal, de espécimes imunes ao corte, expostos à ameaça real de extinção, somente representa um preço inferior, e portanto, uma vantagem econômica ao Estado, porque não expressa TODOS OS CUSTOS que deveriam ter sido considerados para a exposição de tal preço.

Não foram considerados nessa equação, eventuais custos sociais e principalmente, os custos ambientais do produto oferecido. Uma vez desconsideradas estas variáveis para a composição do preço, a vantagem econômica imediata se reverte posteriormente, em desvantagens na forma de externaldidades compartilhadas de forma coletiva, entre todos os membros da sociedade.

Estas escolhas realizadas pelo Poder Público, o comportamento público pode envolver e refletir em perda de qualidade de vida para toda a sociedade. A aquisição de madeira oriunda de desmatamento ilegal, a aquisição de bens que empreguem em seu processo produtivo, o uso de trabalho escravo, representam a diluição coletiva de externalidades, de custos sociais e ambientais que não foram oportunamente considerados, seja pelo operador econômico, seja pelo próprio Estado, que assim procedendo, contribui para o incremento do quadro de riscos que deveria reduzir e mitigar, pois lhe foi atribuído um dever de proteção dos direitos fundamentais.

Portanto, escolhas que podem representar vantagens econômicas em um plano imediato, podem resultar, em escalas temporais variadas, desvantagens expressas em cenários de iniqüidade ambiental, porque externalidades produzidas de forma privada e toleradas pelo Estado que deveria assegurar a proteção dos direitos fundamentais, são repartidas e compartilhadas entre todos os membros da coletividade. Tem-se aqui, a reprodução de uma visível contradição: O Estado obtém vantagens econômicas às custas de contribuir de forma indireta, para a elevação dos riscos que deveriam ser evitados pelo exercício de suas funções.

Se é dever estatal proceder de forma racional e proporcional perante o interesse público que precisa ser atingido, objetivando assegurar o melhor nível de desenvolvimento de um conjunto expressivo de realidades vinculadas à existência humana, é também dever estatal assegurar a proteção dos direitos fundamentais à saúde e ao meio ambiente, reduzindo os riscos e não contribuindo para a sua elevação. Se assim procede, contribui de forma distinta daquela sugerida inicialmente, para a elevação dos gastos públicos e para o desequilíbrio na realização de padrões de justiça distributiva. Contribui para o incremento dos riscos existenciais e não para a sua mitigação e redução.


O que podemos concluir: O estudo do direito financeiro não envolve apenas a análise de normas financeiras, de orçamento público e das leis 4.320/1964 e LC n. 101/2000. O descumprimento de normas ambientais, civis, urbanísticas, sanitárias produz repercussões sérias para as escolhas públicas, e conseqüências graves para o equilíbrio das relações de solidariedade apontadas pela Constituição, e que devem permear a atividade financeira do Estado.

O aumento dos níveis de poluição atmosférica, a poluição de solos e das águas por atividades econômicas como curtumes, indústrias de bebidas, indústrias químicas, olarias, e outras, resulta como conseqüência direta a perda de qualidade de vida de toda a sociedade, que suporta de forma coletiva os ônus de tais atividades, em proveito de poucos beneficiários. Temos aqui a visível descrição de um estado de desequilíbrio nas relações de solidariedade definidas pela Constituição para a garantia das tarefas públicas. Os custos de tais atividades se implicam em proveito individual, não podem ser suportados por toda a coletividade.

Se uma usina hidrelétrica não realiza um estudo prévio de impacto ambiental, que é o instrumento capaz de expor um diagnóstico e um prognóstico do conjunto dos efeitos negativos prováveis relacionados ao projeto, não for suportado pelo operador econômico, é a sociedade que responderá pelos mesmos, suportando as externalidades (perda de qualidade de vida) e os custos públicos das medidas que terão de ser adotadas pelo Estado para mitigar, obstar, recuperar e restaurar os danos produzidos (custos com o sistema de saúde pública, com a despoluição de rios, solos, ar, recuperação de espaços naturais, etc...).

A não imputação dos custos dessas externalidades àqueles que tenham contribuído efetivamente para sua produção gera um estado de desequilíbrio nas relações de justiça, com graves conseqüências para as relações existenciais de toda a sociedade. Daí a necessidade de, sempre que examinarmos o conteúdo financeiro da atividade estatal, vincularmos essa análise e a situarmos nesse amplo contexto da organização contemporânea do Estado constitucional de Direito, que fortalece as noções de responsabilidade, solidariedade, de cooperação e, sobretudo, de equilíbrio, que vedam a reprodução de cenários de injustiça econômica na repartição dos encargos sociais.

Se é correto admitir que a proteção de direitos fundamentais de forma isonômica depende do envolvimento necessário e da repartição de encargos entre o Estado e toda a coletividade beneficiária de uma rede de proteção social, não o é sustentar que a toda a sociedade deva suportar, financeiramente, os efeitos de escolhas individuais. A sociedade não pode e não deve suportar encargos que decorrem de escolhas e de excessos no exercício de liberdades econômicas e civis de poucos.

Os custos de ações públicas como a despoluição de um rio, decorrem diretamente de escolhas que foram realizadas previamente por particulares e pelo próprio poder público (escolhas inadequadas, excessos no exercício de suas liberdades). O resultado dessas escolhas equivocadas produz influência sobre a atividade financeira do Estado, que exigirá a colaboração do particular, na repartição dos custos pela proteção de direitos fundamentais, ou de custos para assegurar o exercício de direitos fundamentais que já foram violados. Obrigações de fazer, nesse sentido, resultam em custos ao Estado, custos que geralmente serão suportados pelo particular, na forma de exações tributárias. Por este instrumento, o Estado exige a cooperação e a colaboração financeira de toda a coletividade para o fim de proteger direitos fundamentais. Obrigações de não fazer, em geral, resultam em imposições sem ônus financeiros (v.g, a obrigação de não depositar resíduos ou eliminar dejetos sem tratamento, no solo ou nos cursos hídricos).

Mitigar ou ainda, procurar a adaptação perante os efeitos das mudanças climáticas globais passa hoje, por uma franca discussão sobre o comportamento do Estado em relação às suas despesas. Como o Estado aplica os recursos públicos que estão à sua disposição também constitui, neste momento, objeto de relevância para a organização das ações e medidas para o enfrentamento de semelhante cenário de riscos. De acordo com as decisões que o Estado realiza sobre como empregar os recursos à sua disposição, ter-se-á melhores condições para mitigar os efeitos das mudanças climáticas globais. Portanto, as despesas públicas, e o comportamento financeiro do Estado também interessa, primeiro, à qualidade de vida, à proteção do meio ambiente, à redução dos riscos existenciais, neste caso, relacionados à definição de políticas públicas capazes de assegurar a proteção da humanidade, perante os efeitos das alterações climáticas extremas.


Problema para reflexão: Nem só de proibições e restrições [ações de comando e controle] depende a definição das escolhas públicas sob o âmbito financeiro. Políticas públicas de transparência, que sujeitem as funções públicas ao dever de proteger e assegurar o acesso à verdade, proporcionando informação suficiente e oportuna sobre os riscos de processos, técnicas, tecnologias, substâncias, e sobre o estado do meio ambiente, expondo a realidade dos fatos sobre alternativas sustentáveis, advertindo sobre as conseqüências de determinados modelos de consumo e de uso dos recursos naturais, asseguram a oportunidade de que melhores escolhas possam ser realizadas. Destas escolhas resultará uma repartição mais ou menos equilibrada dos encargos e dos deveres de solidariedade coletiva para o fim de garantir que um mínimo de condições para a existência de todos possa ser atingido pela ação estatal. Melhores escolhas são realizadas com informação suficiente, sendo razoável admitir que é bastante mais provável que escolhas inadequadas, deficientes ou inoportunas [que terão conseqüências sob o plano da elevação ou diminuição dos encargos entre toda a coletividade, ou melhoria na distribuição e destinação dos recursos disponíveis] em um cenário de ignorância, no qual a informação necessária não esteja disponível ou não seja acessível a todos os interessados em condições de influenciar de modo relevante o processo de repartição dos encargos.

Concluindo: Um aspecto importante que deve ser considerado ao longo de toda a disciplina é a responsabilidade do gestor público no uso de recursos que têm origem no patrimônio particular, para o único objetivo de atingir tarefas e atender a necessidades no interesse da coletividade.

A proteção dos interesses dos particulares deriva da noção de accountability. Os excessos da representação se traduzem em desperdício, desvios de recursos, que por sua vez se traduzem em omissões lesivas a direitos fundamentais, representando, concretamente, degradação existencial, ou diminuição da qualidade de vida. É condição para o desenvolvimento das democracias, e existência de instituições que tiveram atribuídos poderes para fiscalizar o exercício dos poderes de representação, protegendo a sociedade da hipótese de excesso nessa representação. Daí a importância para os mecanismos de controle, internos e externos (as comissões internas e os tribunais de contas nos Estados e na União).

Portanto, porque a abordagem que se encontra exposta é importante? A meta é enfatizar ao longo do curso, uma forte vinculação do que se fará na exposição teórica, de conceitos e fundamentos, ao plano da realidade fática, do cotidiano, e da rotina de cada um de nós, em nosso dia-a-dia. O passo decisivo para atingir esse objetivo está em ressaltar que, as conseqüências no plano material, refletidas em qualidade de vida, direitos, assistência, ou mesmo da própria garantia de sobrevivência física, decorrem, antes de mais nada, não da mera declaração de direitos ao longo de uma constituição escrita. Todo o conjunto dessas conseqüências decorre, necessariamente, de escolhas que são realizadas aqui, escolhas sobre como, onde e porque destinar recursos para determinadas atividades, e para atingir estas e não aquelas prioridades, objetivos, tarefas. Disto decorre a concretização de determinados direitos fundamentais, melhoria de qualidade de vida e a própria sobrevivência física.